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Sundar Pichai, CEO do Google, fala durante a conferência Google I/O 2024, realizada em 14 de maio do ano passado - Foto: reprodução

Google dá sua bênção para que a IA seja usada em armas e vigilância

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Em mais um caso de big tech que trai seus princípios, na terça passada (4), o Google alterou suas regras éticas para que a inteligência artificial da empresa possa ser usada no desenvolvimento de armas, na vigilância de pessoas, em produtos que possam causar danos severos à sociedade ou que violem direitos humanos.

Não quer dizer que a companhia entrou no negócio de armas de destruição em massa. Sua posição agora é de “mitigar resultados não intencionais ou prejudiciais” e buscar “princípios amplamente aceitos do direito internacional e dos direitos humanos”. Mas na prática, isso significa pouco ou nada.

É uma mudança profunda, que pode ter impacto global no uso da IA. Pela posição de enorme destaque do Google, ela pode inspirar empresas do mundo todo a fazer o mesmo, provavelmente com ainda menos cuidado.

É inevitável perguntar por que decidiram fazer isso agora, e por que se recusavam até então. Além disso, se a IA poderá ser usada largamente em produtos criados com o objetivo de matar pessoas, qual garantia existe de que essa tecnologia não sairá do controle, com consequências devastadoras?

Vale lembrar o antigo lema do Google: “don’t be evil” (“não seja mau”), um pacto com práticas empresariais éticas e responsáveis. Mas em 2015, a Alphabet, conglomerado que incorporou o Google, trocou o mote por “faça a coisa certa”, bem mais genérico.

E cá estamos discutindo como a recente decisão pode ser tão má!


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O Google alega que a decisão reflete a necessidade de empresas de “países democráticos” defenderem seus valores em um cenário geopolítico complexo. Mas especialistas sugerem que a pressão do mercado de IA e a busca por lucrativos contratos militares de um governo nacionalista podem ter influenciado seus gestores.

Qualquer que seja o motivo, a empresa mina a confiança do público e sinaliza que a ética é negociável. Isso estabelece um novo padrão para toda a indústria, em uma competição global impiedosa e menos preocupada com direitos humanos.

Ironicamente, no início do mês, passaram a valer partes da Lei da Inteligência Artificial da União Europeia que proíbem o uso de sistemas de reconhecimento facial em espaços públicos e restringem aplicações consideradas de alto risco, como a manipulação comportamental e a vigilância em massa.

A nova posição do Google se choca com a anterior, que listava as “aplicações que não buscaremos”: armas, vigilância, tecnologias que “causam ou podem causar danos gerais” ou que violam os princípios do direito internacional e dos direitos humanos.

Essas regras que agora foram enterradas surgiram após protestos de funcionários em 2018 contra o projeto Maven, um contrato militar que usava seus algoritmos de visão computacional para analisar imagens de drones. Milhares assinaram uma carta aberta que dizia: “acreditamos que o Google não deveria estar no negócio da guerra”. Por isso, além daquelas regras, o contrato com o Pentágono não foi firmado na época.

O Google não está sozinho nesse novo posicionamento. Concorrentes como Microsoft, Amazon, OpenAI e Anthropic já oferecem suas IAs para aplicações militares. Mas o gigante de busca sempre serviu de inspiração para aqueles que procuram um uso ético da tecnologia. Agora isso acabou!

 

“Skynet feelings”

Algumas das maiores autoridades em IA do mundo, como o canadense Yoshua Bengio, vencedor em 2018 do prêmio Turing (o “Nobel da computação”), afirmam que a busca pela inteligência artificial geral (AGI), que terá autonomia e flexibilidade semelhante ao cérebro humano, pode levar a comportamentos inesperados ou indesejados, até mesmo contrários aos interesses humanos.

Sistemas com aprendizado autônomo podem criar estratégias para autopreservação ou poder, o que poderia torná-los difíceis de controlar. A falta de transparência aumenta o risco de decisões incompreensíveis e não-rastreáveis, dificultando a intervenção humana em casos críticos. Mesmo um botão físico para desligar um servidor (um “kill switch”) poderia ser contornado com a IA se replicando em incontáveis outros servidores antes que fosse possível interromper seu funcionamento.

Adicione a esse caldo a IA sendo usada para o desenvolvimento e operação de armas autônomas. Não entrarei em cenários da ficção em que máquinas decidem exterminar a humanidade, mas isso pode, sem dificuldade, levar a violações de direitos humanos e a escaladas militares perigosas. Pode ainda incentivar o uso de IA para vigilância em massa, especialmente por regimes autoritários, comprometendo as liberdades civis.

Para evitar isso, as big techs deveriam agir de forma oposta ao que estão fazendo. Devem existir regras internas e leis que impeçam o uso da IA em atividades potencialmente perigosas ou que violem direitos individuais. Além disso, os sistemas precisam ser transparentes para auditorias independentes. E isso deve acontecer em todos os países do mundo: talvez o mais difícil de tudo isso, e o que põe tudo a perder.

A decisão do Google de flexibilizar seus princípios éticos não pode ser vista como uma mera decisão empresarial. Como uma das empresas mais valiosas do mundo, cujos produtos são usados diariamente pela maior parte da população global, deveria ser um farol mostrando que responsabilidade e inovação podem coexistir. Mas a gigante decidiu priorizar os lucros em detrimento da segurança e dos direitos humanos.

Essa é uma lógica do capitalismo: companhias não fazem nada que comprometa seus lucros. Assim, é uma ilusão esperar que elas se autorregulem efetivamente por pressões competitivas e financeiras. Diante disso, regulamentações governamentais tornam-se essenciais para estabelecer limites claros e garantir que o desenvolvimento tecnológico continue existindo, mas sem comprometer valores humanos fundamentais.

Nada disso é ficção: vivemos uma realidade que nos brinda com avanços fabulosos, mas que oferece um mundo perigosamente instável por conflitos militares, Estados autoritários que atropelam a civilidade pelos interesses de seus governantes, e uma sociedade cada vez mais fragilizada, em que o cidadão, de tão manipulado pelo meio digital, defende ferozmente seus próprios algozes.

Com tudo isso, quem precisa de robôs assassinos?