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Donald Trump toma posse como presidente dos EUA pela segunda vez - Foto: Congresso americano/Creative Commons

O resgate da civilidade digital depende de cada um de nós

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Com a posse para seu segundo mandato como presidente dos EUA, Donald Trump, um notório valentão que faz de agressões, desqualificações e fake news ferramentas do cotidiano, iniciou uma nova fase de deterioração da convivência online. Com a adesão explícita das big techs a essa agenda, o processo deve se ampliar exponencialmente. Isso seria grave o suficiente por si só. Mas em um mundo dominado por redes sociais, o maior risco vem do exército voluntário que amplia seus métodos para além dos limites do digital, esgarçando a própria trama da sociedade.

Há aqueles que se alinham a esse movimento e participam ativamente dele. Existem os que acham tudo “normal”, e acabam espalhando o conteúdo nocivo alegremente, com um entendimento distorcido da liberdade de expressão. E tem os que parecem não se importar com nada e acabam fazendo isso de forma inconsciente.

Não há nada de “normal” ou inocente nisso! Promover o ódio, cercear pensamentos diferentes, atacar grupos sociais, roubar identidades, expor pessoas estão entre os piores comportamentos de nosso tempo. Além da brutal violência psíquica e até física contra as vítimas, isso pode acabar com o debate público: em um meio inseguro e agressivo, as pessoas ficam desencorajadas a expor suas ideias construtivamente. E assim a democracia se enfraquece e os valentões ganham poder.

Pelo seu grande público e influência, jornalistas e criadores de conteúdo digital têm obrigação de combater essas práticas. Mas não são suficientes para eliminar esse mal. A sociedade só reencontrará um caminho sustentável de desenvolvimento quando cada um se empenhar em promover um ambiente digital civilizado.


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Não é uma tarefa simples ou pequena. Infelizmente muitos que propõem uma convivência harmônica e construtiva no meio online acabam sendo agredidos por aqueles que se beneficiam do ódio e da polarização, em uma tentativa explícita de silenciá-los. Por isso mesmo, não se devem deixar intimidar.

Mas há boas maneiras para se lidar com esses “trolls da política digital”. Fazer as escolhas certas diferencia entre uma explosão de ódio e uma contenção da violência pela racionalidade e pela empatia.

Como mencionado anteriormente, nada disso é protegido pela liberdade de expressão. O artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais, determina, em seu inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Isso assegura que se possa dizer o que quiser, mas, ao mesmo tempo, determina que os responsáveis por violações de direitos como honra, imagem ou privacidade, ou que cometam outros crimes sejam identificados e punidos.

Muitos argumentam que querem ter a liberdade de falar nas redes as maiores barbaridades, e que depois a Justiça que cuide das punições. Isso seria aceitável se o Judiciário tivesse capacidade infinita de julgar e punir todas as violações, o que está muito longe de acontecer. Assim essa proposta, travestida de liberdade, não passa de um subterfúgio para se cometer esses crimes impunemente.

Os ataques online se unem a outras formas de violência, como as direcionadas a grupos específicos, como mulheres, negros, pessoas com deficiência e LGBTQIA+, que vivem em determinada região ou professem uma fé específica. É comum que essas características sejam usadas para inflamar o ódio e ampliar a desinformação, para que o valentão atinja objetivos que não têm nada a ver com a situação da vítima.

 

Não alimentem os “trolls”

O ataque dos “trolls digitais” não pode ser classificado como mera contraposição de ideias divergentes (como costumam se defender), porque eles não aceitam o debate. Visam apenas desestabilizar sua vítima e prejudicar a troca saudável de argumentos.

Isso foi perfeitamente descrito em 1945 pelo austríaco Karl Popper (1902-1994) com seu “paradoxo da tolerância”, no best-seller “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”. Segundo ele “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”. O filósofo explicava que “se não estivermos preparados para defender a sociedade do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.

Para ele, as filosofias intolerantes devem ser combatidas com argumentos racionais e mantidas em xeque frente à opinião pública. Mas alertava que os intolerantes não lidam com a razão, “a começar por criticarem todos os argumentos e proibindo seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores e os ensinam a responder aos argumentos com punhos ou pistolas”. E sugeria que “devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique fora da lei e que qualquer incitação à intolerância e perseguição seja considerada criminosa”.

Popper queria evitar algo que se observa muito hoje. Formadores de opinião e pessoas comuns se afastam do debate público com medo dos “trolls”. Quando isso acontece, as ideias dos valentões evoluem para uma sociedade totalitária, em que os que não se alinharem ao grupo violento perdem gradualmente seus direitos.

Deve-se tomar cuidado ao responder aos “trolls”. Um confronto direto é tudo que eles querem, pois isso valida seus métodos e cria novos valentões. Além disso, o embate tende a normalizar o discurso violento e banalizar suas pautas excludentes.

Às vezes, deixar o “troll” falando sozinho é o melhor a se fazer. O problema é que, nas redes sociais, alguém pode amplificar os ataques desnecessariamente. Nesse caso, o silêncio pode não servir mais. A violência deve então, de maneira constante e resiliente, ser combatida com ética, sensatez e propostas construtivas.

Em 1947, Winston Churchill disse: “Ninguém espera que a democracia seja perfeita ou infalível. Na verdade, tem sido dito que a democracia é a pior forma de governo, excetuando-se todas as demais formas.” O ex-primeiro-ministro do Reino Unido, considerado um dos maiores estadistas da história, sabia que a democracia só funciona bem pela contraposição de ideias. Mas isso só é válido quando pessoas com ideias diferentes não apenas conseguem conviver entre si, como ainda constroem juntas uma sociedade, em nome de um bem maior.

Diante do avanço de governos encabeçados por valentões de qualquer ideologia, que sistematicamente silenciam ideias diferentes das suas, as sociedades precisam reforçar a educação digital e midiática. A primeira permitirá que seus cidadãos saibam usar adequadamente os recursos digitais para uma vida melhor; a segunda, que desenvolvam um senso crítico refinado, informem-se melhor e fiquem menos suscetíveis à desinformação e à brutalidade dos “trolls”.

Mas acima de tudo, precisamos urgentemente resgatar nossa humanidade e nossa capacidade de sermos empáticos, inclusive com quem não conhecemos. É assim que verdadeiramente se derrota um valentão.

 

Mark Zuckerberg, CEO da Meta, durante anúncio de medidas como o fim da moderação de conteúdo em suas redes - Foto: reprodução

Por que a guinada de Zuckerberg sobre conteúdo é uma tragédia social

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A grande notícia no mundo digital na semana passada foi o cavalo de pau que Mark Zuckerberg deu na política de moderação de conteúdo da Meta, afetando Facebook, Instagram e Threads. Com um intenso alinhamento às ideias do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, as medidas levantam preocupações legítimas sobre como isso impactará a qualidade das entregas das redes sociais e a própria democracia.

Especialistas diversos afirmam que o nível das publicações e dos debates nessas redes deve cair dramaticamente, empobrecendo seu papel social e corroendo a credibilidade da empresa. Pela sua descomunal penetração, isso deve agravar a polarização na sociedade. E a disposição manifestada pelo seu CEO de ativamente afrontar governos que contrariarem seus interesses pode desestabilizar nações.

Esse é o ponto mais grave desse movimento. Executivos das big techs cada vez mais se dão o direito de se colocar acima da lei e de valores, não apenas dos EUA, mas de países muito diferentes. Com uma grotesca distorção do conceito de liberdade de expressão, ameaçam a estabilidade social, uma influência nefasta e indevida nunca vista na história, que impõe seus interesses pessoais sobre populações inteiras.

Essa é uma perigosíssima nova ordem mundial que precisa ser combatida, sob o risco de desaguarmos em uma barbárie onde ninguém mais se respeite, colocando o próprio conceito de sociedade em risco.


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As políticas de moderação da Meta surgiram com o escândalo da Cambridge Analytica, que estourou em março de 2018. Os jornais “The Guardian” e “The New York Times” demonstraram que essa empresa coletou dados de 87 milhões de usuários do Facebook sem seu consentimento, para influenciar a primeira eleição de Trump e o referendo do Brexit, ambos em 2016. Isso escancarou a manipulação das redes, e o Facebook foi acusado pelo Congresso americano de não proteger seus usuários desse controle.

Trump, que teve suas contas no Facebook e no Instagram suspensas em 2021 por incitar a violência que levou à invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro daquele ano, comemorou o novo posicionamento da Meta. Em entrevista após o anúncio, disse, sem nenhum constrangimento, que provavelmente sua ameaça de prisão perpétua a Zuckerberg no ano passado pode ter pesado nessa decisão.

Mas não sejamos inocentes: o alinhamento dessas empresas a Trump lhes trará muitos benefícios. E com seu virtual controle dos três Poderes no país, as ameaças sobre as big techs que se unirem a ele tendem a desaparecer. “Na verdade, elas nunca quiseram combater desinformação”, explica Pollyana Ferrari, pesquisadora em mídias e professora da PUC-SP. “Eram mais ações isoladas para dizer que faziam algo, porém agora os bilionários não precisam mais disfarçar seus objetivos.”

“Em 2017, Chris Cox, então diretor de produtos do Facebook, descobriu que havia uma correlação entre maximizar o envolvimento do usuário e inflamar as tensões, e que reduzir a polarização significaria prejudicar o engajamento”, relembra Magaly Prado, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP. Então, mesmo sabendo que algumas eram “anticrescimento”, propôs várias soluções, mas elas não foram implantadas. “As big techs que abrigam as redes sociais não estão nem aí com as pessoas que eles costumam chamar de usuários”, acrescenta.

O anúncio de Zuckerberg provocou protestos de especialistas do mundo todo, que pedem que as mudanças sejam revertidas. Em resposta, a Meta tomou mais medidas na mesma linha, como acabar com seu programa de Diversidade e Inclusão.

“O mais preocupante não é apenas o fim do programa de checagem, mas o fato de que Zuckerberg encerrou essa iniciativa com um ataque perigoso e infundado a um trabalho que vinha sendo feito de forma criteriosa”, diz Clara Becker, jornalista especializada em desinformação e diretora da ONG de educação midiática Redes Cordiais. “Em vez de fortalecer o combate à desinformação, a Meta escolheu um caminho que descredibiliza os esforços existentes e agrava ainda mais o cenário de manipulação e polarização nas plataformas”, alerta.

 

O que Zuckerberg quer?

Ao se alinhar aos interesses de Trump, o CEO da Meta espera diminuir seus custos e ganhar um aliado para combater países que ameaçarem seus negócios, além de apoio contra pressões políticas e legais domésticas.

“Atuar contra regulações locais pode ser percebido como uma forma de neocolonialismo digital, prejudicando a autonomia de países e minando a confiança em governança global”, adverte Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Para ele, “promover políticas alinhadas exclusivamente a interesses americanos pode agravar tensões globais e alimentar narrativas antidemocráticas”.

Zuckerberg quer fazer o que bem entender na sua companhia, o que, a princípio, é seu direito. Mas redes sociais não são empresas como outras, pela sua absurda influência sobre o mundo! Portanto, dizer que defende a liberdade de expressão é, no mínimo, hipócrita, pois ninguém sabe como seus algoritmos promovem e escondem o que quiserem.

“O discurso de garantir a liberdade de expressão é falacioso, na medida em que a remoção de conteúdos inverídicos, falseados, criminosos não configura censura”, explica Crespo. “No Brasil, não há liberdade plena de expressão, por isso a Constituição determina que é vedado o anonimato, justamente para responsabilizar quem cometer abusos.”

Duas situações podem surgir disso. Na primeira, governos, Justiça, empresas e outros membros da sociedade reagem para elaborar regras equilibradas para evitar a desinformação, exigindo uma responsabilidade e uma transparência que as redes sociais nunca tiveram, o que seria muito positivo. Na outra, ruim, a proposta de Zuckerberg avança e seus algoritmos privilegiam lucros ao invés de segurança, explodindo os conteúdos nocivos, como aconteceu no X de Elon Musk, criando sociedades instáveis, em que as pessoas não concordam, nem constroem coisas juntas. Por isso, segundo Prado, “é inevitável e fundamental que possamos debater a justiça dos dados, as leis que vão reger quem provoca o distúrbio informacional”.

“A moderação de conteúdo é um dos grandes desafios do século XXI, e não há sistema infalível para lidar com desinformação e discurso de ódio”, afirma Becker. “O cenário ideal seria aquele que promove um equilíbrio entre liberdade de expressão e responsabilidade, garantindo que conteúdos enganosos, discursos de ódio e incitações à violência ou discriminação sejam eficazmente controlados”, conclui.

A desinformação deve ser combatida com boa informação. Quando Zuckerberg confirma a anarquia das redes sociais, isso reforça a importância do jornalismo e da checagem de fatos profissionais. Mas infelizmente eles não são suficientes, pois os algoritmos continuarão promovendo o conteúdo nocivo, que lhe é mais lucrativo.

Por tudo isso, deve-se exigir mais transparência das plataformas, ao invés de aceitar o contrário, que nos está sendo imposto. A verdade não pode ser opcional, devendo ser cuidada por todos como um bem público, ou corremos o risco de ter consolidado um animalesco Estado sob a lei do mais forte.

 

Influenciadores dominam a linguagem das redes, mas a maioria não checa as informações que publica - Foto: Freepik/Creative Commons

Influenciadores promovem desinformação por amadorismo e descuido

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Que as redes sociais são o grande vetor da desinformação, não é novidade. Mas em tempos em que o Supremo Tribunal Federal (STF) discute se essas plataformas têm responsabilidade sobre conteúdos nocivos em suas páginas, precisamos entender as motivações que levam alguém a fazer isso. Nesse cenário, os influenciadores digitais desempenham um papel central, pelo seu poder de persuasão de grandes plateias.

Existem aqueles que conscientemente propagam informações falsas, e esses devem ser combatidos. Mas o estudo “Por Trás das Telas”, publicado no dia 26 de novembro pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) mostra que muitos fazem isso sem intenção, por amadorismo ou descuido.

Realizada com 500 influenciadores de 45 países, incluindo o Brasil, a pesquisa indica que apenas 36,9% dos influenciadores verificam a correção das informações que publicam. Além disso, 41,7% deles consideram curtidas e visualizações como o principal critério de credibilidade de suas fontes.

Esses dois números deixam claro que eles podem ser facilmente manipulados pelos criadores de desinformação, agravando o problema. A boa notícia é que 73% demonstraram interesse em serem treinados para melhorarem em sua atividade.

Apesar dos ataques daqueles que se beneficiam da desinformação, a imprensa ainda goza de boa credibilidade com a maior parte da população. Mas há anos ela não está mais sozinha no processo informativo, dividindo esse espaço com os influenciadores.

Seria ótimo que esses dois grupos trabalhassem juntos, mas parecem viver em mundos distintos. É uma pena, pois o público se informa por ambos, cada um com suas vantagens e desvantagens.


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O estudo aponta que apenas 36,9% dos influenciadores digitais se informam pela imprensa, a mesma quantidade dos que fazem isso a partir de fontes online que não sejam da mídia profissional. Sua principal “fonte” é a própria experiência (58,1%), seguido por pesquisas e entrevistas próprias (38,7%).

Para os influenciadores, as já citadas curtidas e visualizações de longe dão mais credibilidade a uma fonte. Depois vem a simples confiança em um amigo ou especialista (20,6%), seguida de perto pela reputação do autor (19,4%). Documentações são usadas apenas por 17,0% dos influenciadores.

Se apenas 4 entre 10 deles checam as informações antes de publicá-las, 33,5% publicam sem checar se confiarem na fonte. Outros 15,8% publicam sem verificar se considerarem o conteúdo divertido ou útil. Por fim 13,2% checam apenas se o que compartilharem for uma notícia.

Vale dizer que 59,0% desconhecem ou apenas ouviram falar de regras relacionadas às comunicações digitais e 56,4% conhecem treinamentos voltados para eles, mas só 13,9% desses participaram de algum. Isso faz com que saibam pouco sobre seus direitos e deveres como produtores de conteúdo, o que facilita com que 32,3% sofram com discursos de ódio nas redes. Tudo fica mais grave quando se pensa que ganhar dinheiro é a principal motivação de um quarto deles.

O estudo considera que alguém com mais de mil seguidores já pode ser considerado um seguidor, mas 68,0% dos entrevistados tinham até 10 mil seguidores. Desse valor a 100 mil seguidores, eram 25,0%. Apenas 1,6% tinham mais de 1 milhão de seguidores. A rede preferida é o Instagram (34,0%), seguido pelo Facebook (25,0%), o TikTok (16,4%) e YouTube (9%).

A categoria mais popular é de “moda e estio de vida” (39,3%). Na sequência, vêm “beleza” e “viagem e comida” (ambos com 34,0%), “jogos” (29,0%) e “comédia” (27,1%). Os estilos mais populares de publicações são “coisas bonitas” (18,0%), “entretenimento e memes” (15,6%) e “recomendações” (13,8%).

Ao contrário da imprensa, que, a despeito de imperfeições, segue regras rígidas para produção de conteúdo, esse amadorismo dos influenciadores representa um sério ponto de atenção.

 

“Desordem informacional”

Em 2017, um estudo do Conselho da Europa e da Universidade de Harvard classificou a “desordem informacional” em desinformação (informação deliberadamente errada para causar danos), informação falsa (errada, mas sem intenção de causar danos) e informação maliciosa (correta, mas usada para causar danos). Influenciadores, muitas vezes, se encontram na segunda categoria, quando espalham informações incorretas por confiarem em fontes ruins ou por não saberem como verificar uma informação.

O instituto britânico Alan Turing detalhou em 2021 como uma sociedade pode ameaçar a própria sobrevivência com ataques deliberados à aquisição de conhecimento. Segundo a pesquisa, há quatro ameaças a isso, nenhuma ao acaso. A primeira são pessoas que atrapalham as decisões com desinformação, de maneira consciente ou não. Há também o excesso de informação, que atrapalha as pessoas na separação de verdades e mentiras. Elas também se acostumaram a rejeitar o que desafia suas ideias, particularmente se houver uma forte identidade no grupo. E, por fim, as redes sociais tornaram mais difícil avaliar a confiabilidade das fontes.

A pesquisa conclui que, quando não sabemos em quem acreditar, confiamos naquilo que nos mostra o mundo como queremos. Novamente os influenciadores podem se tornar ferramentas poderosas para a desinformação, mesmo inconscientemente.

Infelizmente as perspectivas de melhora desse quadro não são animadoras, diante da resistência das redes sociais de sofrerem qualquer tipo de responsabilização e do persistente amadorismo dos influenciadores. A colaboração desses profissionais com jornalistas, atuando de maneira complementar, traria grande benefício à sociedade.

Os influenciadores têm alcance e confiança de seus seguidores, além de dominar a linguagem das plataformas digitais. Já os jornalistas possuem ética e técnica para produzir informações precisas e contextualizadas. Uma parceria efetiva entre essas comunidades poderia não apenas mitigar os impactos da desinformação, como fortalecer a confiança no ecossistema informacional.

Infelizmente isso esbarra em barreiras culturais e estruturais. Influenciadores priorizam sua autonomia criativa, e podem ver jornalistas como representantes de um modelo de comunicação pouco dinâmico e distante da realidade das redes. Jornalistas, por sua vez, frequentemente subestimam a capacidade dos influenciadores de se adaptarem às boas práticas jornalísticas.

A desinformação é um dos maiores desafios dessa geração. Ela sempre existiu, mas as redes sociais transformaram o que antes não passava de fofocas restritas em uma indústria milionária de distorção da realidade. Apesar desse fenômeno digital ter menos de uma década, já provocou danos irreparáveis no mundo.

A solução desse problema depende de todos nós, começando por escolhermos fontes confiáveis de informação. O estudo da Unesco mostra que, se influenciadores e jornalistas conseguissem juntar forças criativamente, poderiam construir ambientes informacionais mais saudáveis, transparentes e comprometido com a verdade.

A sociedade agradecerá muito se isso acontecer!

 

Brasileiros ficam na 44ª posição do indicador que mede as nações mais felizes do mundo – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Aceleração do mundo digital ameaça a alegria das pessoas

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O brasileiro se gabava de ser o povo mais feliz do mundo. Éramos acolhedores até com estranhos e levávamos a vida de forma leve e bem-humorada, mesmo diante de adversidades do cotidiano. Vivíamos na orgulhosa pátria das chuteiras, do samba, do suor e da cerveja. Mas olhando a nossa volta, parece que isso ficou no passado. Muitas coisas explicam essa queda, mas algo sorrateiro tem um papel decisivo nesse entristecimento: a aceleração descontrolada de nossas vidas pelo meio digital.

Segundo o Relatório de Felicidade Mundial 2024, organizado pela consultoria Gallup, pela Universidade de Oxford e pela ONU, lançado em março, o Brasil amarga uma melancólica 44ª posição no indicador de nações felizes, de um total de 143, logo depois da Nicarágua e da Guatemala. Pelo sétimo ano seguido, o país mais feliz do mundo foi a Finlândia. Aliás, o norte da Europa domina a lista, com as primeiras posições completadas por Dinamarca, Islândia e Suécia.

Cada um sabe “onde aperta seu calo”. Entre outras questões, os brasileiros ficaram tristes pela violência, pela corrupção, pela política suja, pelo acesso precário a serviços básicos e pela instabilidade econômica, que leva a um medo constante de perder o emprego. Mas o nosso profundo apreço pelas redes sociais semeou em nós uma permanente insatisfação, que nos torna ansiosos e substitui muitos bons valores por insanas e contínuas buscas, como riqueza fácil com “jogos de tigrinhos” e afins.

Não dá para ser feliz enquanto se estiver insatisfeito! Obviamente temos que buscar nosso crescimento, mas precisamos resgatar o controle de nossas vidas, valorizando aquilo que verdadeiramente nos faz avançar. As redes sociais nos estimulam o tempo todo, de uma maneira que nosso cérebro não mais consegue lidar com tanta informação. Enquanto não percebermos como somos manipulados digitalmente, não sairemos desse quadro desolador.


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O Relatório de Felicidade Mundial considera diversos aspectos para definir a felicidade de um povo. Entre eles, estão o PIB per capita, o apoio de parentes e amigos, a expectativa de vida ao nascer, a liberdade de se fazer escolhas, a generosidade com o próximo e a percepção de corrupção. Essa última é onde o Brasil aparece pior, mas também vamos mal em liberdade de se fazer escolhas e na expectativa de vida.

A situação se agrava entre os brasileiros mais jovens. Segundo o estudo, se considerarmos só as pessoas com até 30 anos, o país despenca para a 60ª posição. Por outro lado, se computarmos apenas as com mais de 60, saltamos para a 37ª.

Diante disso é inevitável comparar o índice de felicidade com o de uso das redes sociais. De acordo com a versão mais recente do Digital Global Overview Report, publicado anualmente pela consultoria We Are Social, somos os vice-campeões mundiais em tempo online, com uma média diária de 9 horas e 13 minutos, dos quais 3 horas e 37 minutos são dedicados a redes socias. Em comparação, os dinamarqueses têm uma média diária online de 5 horas e 8 minutos e apenas 1 hora e 50 minutos nas redes sociais. A Finlândia não integrou essa pesquisa.

Não é mera coincidência que os mais jovens, que se informam menos por fontes confiáveis e são mais suscetíveis aos algoritmos de relevância, sejam os mais tristes. As sociedades descobriram que, para vender qualquer coisa, de um produto a um político, é preciso acelerar ainda mais a vida, soterrando o senso crítico.

Nesse cenário resultante de estresse, desesperança e cansaço coletivo, as pessoas aproveitam seu pouco tempo livre com diversão rasa, o que reforça a alienação. Rejeita-se tudo que convide a uma leitura crítica da vida.

 

“Pensar dá trabalho”

Fica fácil entender então por que 47% dos brasileiros deliberadamente se recusam a consumir notícias. O número é do Digital News Report 2024, publicado em junho pelo Instituto Reuters e pela Universidade de Oxford. Em 2023, esse índice era de 41%.

O estudo sugere que essa rejeição se deve à percepção de que “só há notícia ruim”. E apenas 43% dos brasileiros confiam no noticiário, o mesmo índice do ano passado, o pior já registrado (há uma década, era 62%). Se serve de consolo, os brasileiros são os que mais confiam nas notícias entre os seis países latino-americanos pesquisados.

Talvez a grande ironia para os que tentam “resistir ao noticiário” é que os mesmos assuntos ruins continuam os impactando, porém a partir de fontes pouco ou nada confiáveis, como WhatsApp ou Telegram. E assim esse conteúdo chega com uma carga emocional ainda mais pesada que se sua origem fosse o noticiário profissional.

Do outro lado, os que mais confiam no jornalismo são justamente os finlandeses, aqueles que também são os mais felizes do mundo, e que integram o grupo de populações menos influenciadas pelas redes sociais.

A informação que processamos em apenas uma semana hoje é muito maior que a que uma pessoa culta era exposta ao longo de toda sua vida no século XVIII. É verdade que o ser humano se adapta a tudo, mas o nosso cérebro tem seus limites. Quando são desrespeitados, entramos em colapso, daí as atuais ansiedade e depressão.

A inteligência artificial infelizmente tende a agravar isso, em um processo batizado de “hipersuasão” pelo filósofo italiano Luciano Floridi, um dos maiores nomes da filosofia da informação. Para ele, a IA já é usada para identificar nossos desejos e medos, e, a partir deles, produzir conteúdos que nos aceleram e nos convencem cada vez mais sobre qualquer tema. E isso ficará pior com o tempo. Tanto que, em janeiro, o Fórum Econômico Mundial em Davos classificou a desinformação impulsionada pela IA como a maior ameaça à humanidade nos próximos anos.

Podemos comprovar isso nas campanhas eleitorais desse ano. Seguindo o padrão dos pleitos anteriores, os candidatos que trazem propostas sensatas ficam muito atrás daqueles que se apresentam como “antissistema”, que “lacram” e acirram os ânimos. Tragicamente eles vencem sem oferecer nada concreto, apenas uma excitação vazia.

Chegamos a um ponto em que parece não haver saída. Governantes não se movimentam para melhorar esse quadro, pois se beneficiam dessa aceleração. As escolas não se posicionam, até por pressão de pais “acelerados”, preocupados com o vestibular e contra professores que insistam em oferecer a seus filhos visões de mundo mais amplas que as de dentro de casa.

Por isso, por mais que sejamos vítimas disso, sua solução recai sobre nossos ombros. E isso é terrível, porque a aceleração do meio digital nos retira os meios para sequer percebermos que ela existe! Somos arrastados a querer sempre mais, porém nunca chegaremos lá, e assim retroalimentamos o sistema que nos massacra.

Não há outro caminho! Temos que pisar no freio e nos questionar se desejaremos continuar fazendo parte dessa roda viva ou se resgataremos o controle sobre nós mesmos. E nesse caso, precisaremos eliminar nossa submissão digital.

 

O apresentador Silvio Santos, que faleceu na manhã desse sábado - Foto: Palácio do Planalto/Creative Commons

Por que nunca mais haverá alguém como Silvio Santos no mundo

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O que dizer de Silvio Santos depois que tudo parece já ter sido dito desde a sua morte, na manhã de sábado? Ícone da televisão, apresentador brilhante, comunicador do povo, empresário nato, generoso, visionário, às vezes polêmico… Sobram substantivos e adjetivos para descrevê-lo, e todos parecem ter sido usados. Decidi então explicar por que nunca mais haverá alguém como ele no mundo.

Silvio Santos levou com ele mais que seu carisma e sua sagacidade: encerrou uma era da comunicação que não pode ser reproduzida. Ele foi um caso único que reuniu a espontaneidade de apresentadores capazes de conquistar o país, como Chacrinha, Hebe Camargo, Fausto Silva e Gugu Liberato, com uma visão empresarial que consolidou a própria televisão no país, ao lado de magnatas como Assis Chateubriand e Roberto Marinho.

Esses nomes tornaram-se símbolos desse meio de comunicação, que reinou soberano no mundo todo por décadas. Até pouco tempo atrás, a televisão era o primeiro eletrodoméstico que o brasileiro comprava para uma casa nova, antes mesmo que a geladeira! Mas isso ficou no passado, assim como o poder dessas personalidades.

Silvio Santos foi criador e criatura de um cenário social e tecnológico que nunca mais acontecerá. Por isso, procurar um sucessor para o que ele representou é uma tarefa inócua. Mas podemos olhar para seus acertos e seus erros, e aprender como melhorar a mídia televisiva e digital, para que realmente atenda aos anseios e necessidades do público, algo de que precisamos muito.


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O meio digital fragmentou a mídia e diluiu o poder da televisão. Ela ainda é o principal meio de comunicação, abocanhando uma gorda fatia publicitária, mas não ocupa mais o espaço determinante na vida das pessoas que já teve. Com isso, mesmo suas mais importantes estrelas do entretenimento e do jornalismo não conseguem reunir uma multidão de fãs e criar uma poderosa marca pessoal, como outrora acontecia.

Ironicamente essa influência não foi transferida para os grandes nomes do meio digital. Nessa mídia, a concorrência e a pulverização da audiência são absurdas, fazendo com que mesmo seus destaques não se tornem conhecidos do grande público. É verdade que existem nomes muito populares, como Luciano Huck e Felipe Neto, mas eles nunca atingiram a abrangência e a aprovação de pessoas de todas as classes sociais e de todas as regiões do país, até se tornarem ícones da comunicação.

Tudo isso impede que surja outra figura midiática com a envergadura de Silvio Santos no Brasil e em qualquer lugar do mundo. Apesar de sua inegável capacidade de criar conexão com as pessoas, provavelmente mesmo ele não conseguiria repetir seu sucesso hoje, pois o público está mais exigente, buscando opções que sejam muito alinhadas a seus valores. E há muitas delas!

Silvio Santos floresceu em um ambiente de poucas opções, em que a TV era a grande unificadora nacional, retroalimentando a popularidade que conseguia. Isso permitiu que ele saísse da posição de camelô e chegasse às mais altas rodas do poder econômico e político do país.

Isso culminou com uma candidatura-relâmpago à presidência da República, em 1989, a primeira com voto direto para presidente depois da ditadura militar. Silvio Santos foi convencido a entrar na disputa a poucos dias do primeiro turno, saltando para o topo das pesquisas de intenção de voto instantaneamente! Mas sua candidatura acabou impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por falhas na inscrição.

Três décadas depois, a televisão, que já foi o maior cabo eleitoral do país, perdeu essa posição para as redes sociais, usadas pelos candidatos para angariar votos manipulando os algoritmos para controlar corações e mentes dos eleitores.

 

Vamos sorrir e cantar

A despeito de alguns erros empresariais e de posturas inadequadas para os padrões atuais, Silvio Santos deixa para as gerações futuras de comunicadores e de empresários de todos os setores algumas lições importantes. E a maior delas é certamente a preocupação de se conectar ao público de uma maneira espontânea a afável, com uma linguagem que todos podiam entender e até se identificar, sempre com alegria.

Ele era um homem de negócios focado no lucro, mas isso nunca o desviou de criar produtos que atendessem às necessidades de seus clientes e fossem fáceis de entender e de gostar, seja na televisão ou fora dela. Além disso, possuía um senso social bem desenvolvido, o que fazia com que, entre outras coisas, cuidasse muito bem dos profissionais de suas companhias.

Como empresário, ele buscava a inovação e corria riscos. Isso se manifestava não apenas em programas diversificados, mas também em negócios que iam muito além da TV e do entretenimento, como bancos e cosméticos. Nem sempre dava certo, mas era resiliente e bem assessorado para tomar novos rumos diante de adversidades.

Silvio Santos também construiu possivelmente a marca pessoal mais valiosa do país, com seu nome se tornando sinônimo de credibilidade, carisma e diversão para milhões de brasileiros. Fez isso com sua coerência ao longo de décadas, aparecendo como o rosto de seus negócios de entretenimento, algo em que muito acreditava. Não por acaso, ele se tornou uma das pessoas mais imitadas do Brasil.

O apresentador também sempre foi dono de seu destino. Apesar de seu programa ter surgido na TV Paulista, depois incorporada pela Globo, criou sua própria emissora para que pudesse fazer os programas que quisesse, sem depender da aprovação de ninguém.

Nesse sentido, mesmo não sendo mais possível replicar seu sucesso e sua importância social, o legado que ele deixa ainda pode inspirar muita gente. Especificamente no mundo da mídia, eles podem ser muito valiosos em um momento em que grandes marcas lutam sofregamente para se manterem relevantes para um público em constante mudança e com concorrentes inovadores surgindo a todo momento.

O desafio de seus gestores será encontrar novas formas de construir esse tipo de relação com o público, em um mundo cada vez mais diversificado e fragmentado. A música-tema de seu programa dizia que “do mundo não se leva nada”, e isso valeu até para Silvio Santos. Mas como ele mostrou, podemos deixar muita coisa nele se fizermos um bom trabalho e cuidarmos genuinamente das pessoas.

 

Criada por IA, Ren Xiaorong é a âncora do telejornal “Diário do Povo”, controlado pelo governo chinês - Foto: reprodução

IA agora produz e publica notícias, aumentando os riscos de desinformação

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O que você sentiria se o presidente da República telefonasse a você para lhe convencer de algo? Ou se alguém bem próximo, como um sobrinho ou até um filho, enviasse um áudio pedindo dinheiro? Muita gente desconfiaria que se trata de um golpe. Mas o rápido avanço da inteligência artificial está tornando esse tipo de engodo cada vez mais crível, fazendo vítimas em todos os estratos sociais.

Portanto, cuidado ao gritar que jamais cairá em algo assim. Por muito menos, todo mundo já acreditou em alguma fake news!

A ameaça cresce quando se observa que o uso da IA vai muito além da produção de textos, áudios e vídeos bem-feitos. Os robôs agora constroem sequências de notícias falsas sobre temas que lhes forem solicitados. Além disso, eles as distribuem de maneiras cada vez mais criativas, até como se fossem jornalistas humanos.

Não por acaso, em janeiro, o Fórum Econômico Mundial apontou a desinformação potencializada pela inteligência artificial como o maior risco que a humanidade enfrentará nos próximos anos.

As big techs, responsáveis pela criação dessas plataformas, estão se mexendo. No mesmo Fórum, Nick Clegg, presidente de assuntos globais da Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), anunciou que a empresa está trabalhando com os principais nomes do setor para criar mecanismos que identifiquem claramente que um conteúdo foi sintetizado por IA. O executivo classificou a iniciativa como “a tarefa mais urgente” da indústria tecnológica atualmente.

Já passamos há anos do ponto em que as versões ficaram mais “importantes” para o público que os fatos, e falhamos miseravelmente no combate a isso, com consequências desastrosas. Nesse ano, com mais de 2 bilhões de pessoas votando em 58 países, o desafio de todos passa a ser não apenas resgatar o valor da verdade, como também serem capazes de identificá-la.


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Isso já acontece, inclusive onde estão as sedes das big techs: os EUA. O país começou 2024 com a polarização nas alturas pela eleição presidencial em novembro, que deve colocar novamente o atual presidente, Joe Biden, frente a seu antecessor, Donald Trump. O primeiro já vem sendo vítima de vídeos falsos desde o ano passado.

Recentemente, eleitores do Estado de New Hampshire receberam telefonemas com a voz de Biden enganando-os para não votarem na eleição primária local. Isso fez com que o governo proibisse o uso de IA para simular vozes em ligações automáticas no país.

Legislações costumam chegar atrasadas e muitas vezes são ineficientes, diante da velocidade da inovação. O debate sobre regulamentar redes sociais e agora a inteligência artificial vem deixando claro que se focar nas tecnologias é infrutífero, devendo se concentrar na responsabilização dos desenvolvedores e dos usuários que usam esses recursos indevidamente.

O grande problema é que, com ou sem regras claras, os vilões –sejam empresas ou usuários– continuam fazendo o que bem entendem para garantir seus lucros ou outros objetivos. A IA deve facilitar esse processo ainda mais, e eles sabem disso.

A imprensa historicamente desempenha o papel de proteger a sociedade desse tipo de abuso, mas ela própria vem sendo impactada pela inteligência artificial, seja em seus próprios processos, seja na concorrência de “pseudojornalistas digitais” que tentam enganar o público.

O Reuters Institute divulgou em janeiro um detalhado estudo sobre as perspectivas para esse ano sobre jornalismo, mídia e tecnologia. O documento reconhece esses desafios, destacando que a maioria do conteúdo na Internet será produzido por IA já em 2026. Segundo os pesquisadores, isso exige que jornalistas e empresas noticiosas repensem seu papel e propósito urgentemente.

 

“Jornalistas sintéticos”

Essas empresas já observam queda na sua audiência vinda de redes sociais, que passaram a privilegiar criadores no estilo TikTok ao invés de jornalismo, pois isso lhes favorece. O desafio do jornalismo aumenta com o crescimento das “Experiências Generativas de Busca”, um recurso de buscadores como Google e Bing, em que a IA generativa redige parágrafos que explicam brevemente o que o usuário procura. Com isso, ele não precisa mais visitar as páginas de onde as informações foram tiradas.

Em outras palavras, os veículos de comunicação alimentam essas plataformas e não ganham nem mesmo a visita do usuário em troca. É quase como se cada um de nós agora tivesse um “jornalista sintético” a nossa disposição para nos explicar qualquer assunto.

Parece ótimo, mas isso embute um risco enorme: esses parágrafos podem misturar alegremente informações jornalísticas de qualidade com fake news bizarras. Portanto, podem se converter em poderosas ferramentas de desinformação, além de achatar a audiência dos veículos de comunicação.

Pesquisadores acreditam que, nesse ano, plataformas de inteligência artificial também passem a produzir grandes volumes de desinformação, não mais dependendo de comando individuais, mas seguindo diretrizes mais amplas. Como a publicação é automática, isso pode inundar as redes sociais com informações falsas, que soterrariam o conteúdo jornalístico diante dos algoritmos. Além disso, países como China e até Venezuela já usam avatares ultrarrealistas que se passam por jornalistas humanos e despudoradamente leem notícias que lhes forem ordenadas.

O relatório do Reuters Institute indica que as empresas de comunicação pretendem reforçar o contato direto com seu público, em detrimento das plataformas digitais. Mas isso pode afastá-las ainda mais de sua audiência mais jovem e menos instruída, que se sente satisfeita com as notícias geradas por IA.

A inteligência artificial é uma ferramenta fabulosa e estamos em um caminho sem volta para sua adoção em todos os setores da economia, inclusive na comunicação. Apesar de todos esses desafios, ela também oferece muitos ganhos ao jornalismo, se bem usada.

O risco a que todos nós –e não apenas jornalistas– temos que estar atentos é a possibilidade de decisões básicas da sociedade civil, como em quem votar, sejam sequestradas por robôs sem ética. As empresas de comunicação não podem repetir com a IA o erro que cometeram ao desprezar o poder das redes sociais, quando ainda estavam começando. Precisam compreender e se apropriar dessa tecnologia, e ajudar toda a sociedade a fazer o mesmo.

Caso contrário, seremos cada vez mais cidadãos teleguiados.

 

Uma inteligência artificial treinada com informações ruins não deve ser usada para confundir eleitores – Ilustração: Paulo Silvestre

A democracia precisa que o jornalismo e a inteligência artificial se entendam

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A recente briga do New York Times contra a Microsoft e a OpenAI (criadora do ChatGPT) pode ajudar a definir como nos informaremos no futuro e impactar consideravelmente a saúde da democracia no mundo todo. Tudo porque o processo aberto pelo jornal no dia 27 de dezembro contra as duas empresas de tecnologia pode balizar a qualidade do que a inteligência artificial oferecerá a todos nós.

O jornal afirma que seu conteúdo vem sendo usado para treinar as plataformas de IA, sem que seja remunerado ou sequer tenha autorizado esse uso, o que é verdade. Enquanto isso, essas plataformas rendem bilhões de dólares a seus donos.

Desde que o ChatGPT foi lançado no final de 2022, as pessoas vêm usando a IA para trabalhar, estudar e se divertir, acreditando candidamente em suas entregas. Sua precisão e seus recursos para evitar que produza e dissemine fake news dependem profundamente da qualidade do conteúdo usado em seu treinamento. O New York Times e outros grandes veículos jornalísticos são, portanto, algumas das melhores fontes para garantir uma entrega mais confiável aos usuários.

O problema é tão grave que, no dia 10, o Fórum Econômico Mundial indicou, em seu relatório Riscos Globais 2024, que informações falsas ou distorcidas produzidas por inteligência artificial já representam o “maior risco global no curto prazo”.

Nesse ano, dois bilhões de pessoas participarão de eleições no mundo, inclusive no Brasil, e a IA já vem sendo usada para aumentar a desinformação nas campanhas. Por aqui, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) busca maneiras de regular seu uso no pleito municipal de outubro, uma tarefa muito complexa. Por isso, é fundamental que os bons produtores de conteúdo e as big techs encontrem formas de melhorar essas plataformas respeitando os direitos e remunerando adequadamente os autores.


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Em um cenário extremo hipotético em que todos os produtores de bons conteúdos impeçam que os desenvolvedores os acessem, a IA ficaria à mercê de fontes pouco confiáveis (para dizer o mínimo). Isso aumentaria brutalmente a chance de ela ser manipulada, ajudando a transformar os usuários em autômatos da desinformação. E isso seria trágico também para o bom jornalismo, que luta fortemente contra isso.

Criou-se então um dilema: as plataformas precisam de bom conteúdo, mas não estão muito dispostas a pagar por ele, enquanto os veículos jornalísticos têm que garantir seus direitos, mas deveriam ajudar a melhorar as entregas da inteligência artificial.

“Quando eu compro uma assinatura do New York Times, eu não estou autorizado a pegar todo o conteúdo e desenvolver um produto meu em cima dele”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Só que é mais ou menos isso que a OpenAI faz quando pega esses dados”.

Para que os sistemas de inteligência artificial funcionem bem, eles precisam ser treinados com uma quantidade monstruosa de informações diversas, para que aprendam o que dizer e respeitem a diversidade de ideias. Em tese, todas as suas produções são inéditas, por isso os desenvolvedores se valem do conceito jurídico americano do “uso justo” (“fair use”), que protege as big techs há pelo menos duas décadas, quando, por exemplo, rastreiam a Internet inteira para fazer um buscador funcionar.

Por essa regra, os produtos digitais exibiriam apenas pequenos trechos desses conteúdos, insuficientes para configurar uma concorrência. Mas em seu processo, o New York Times afirma que as plataformas de IA exibiriam literalmente grandes nacos de sua produção, inclusive de material exclusivo a seus assinantes. A OpenAI nega.

É um desafio para a Justiça dos EUA, pois as leis do país proíbem a cópia de conteúdo, mas permitem que se criem produtos combinando elementos de diferentes fontes, sem criar concorrência direta. As plataformas de IA fazem as duas coisas.

 

Ameaça à democracia

Nesse pântano jurídico, grupos políticos já vêm se esbaldando nos recursos da inteligência artificial para convencer –ou mais especificamente confundir– os eleitores.

O TSE tenta encontrar formas de pelo menos dificultar que isso aconteça nas eleições brasileiras. No dia 4, publicou dez minutas de resoluções para esse fim. Esses textos estarão em consulta pública até o dia 19 deste mês. Entre 23 e 25 de janeiro, ocorrerão audiências abertas na Corte para o aperfeiçoamento das normas.

Infelizmente, criar ótimas regras é relativamente fácil. Verificar seu cumprimento, por outro lado, é bem difícil, especialmente nas campanhas não-oficiais, realizadas por eleitores diretamente instruídos pelos candidatos ou espontaneamente. Com isso, o gigantesco problema de disseminação de fake news e discursos de ódio em redes sociais (que fazem muito menos do que deveriam para combater isso) agora deve ser potencializado pelo uso da inteligência artificial igualmente não-regulada.

A solução exige, portanto, a participação da Justiça, dos veículos de comunicação e das big techs das redes sociais e de inteligência artificial. Felizmente há também movimentos positivos de consenso.

Segundo o mesmo New York Times, a Apple, que está atrasada no campo da IA, estaria tentando costurar acordos financeiros para justamente usar os conteúdos de grandes empresas de comunicação para o treinamento da sua plataforma em desenvolvimento. A notícia só não é totalmente positiva porque ela estaria interessada em consumir esse conteúdo, mas não em responder por qualquer problema derivado dele, o que está deixando os editores desses veículos desconfortáveis. E eles andam bem desconfiados por seus acordos prévios com o Vale do Silício, que, ao longo dos anos, favoreceram as big techs, enquanto viam seus negócios minguarem.

Tudo isso envolve interesses de bilhões de dólares e moldará a sociedade decisivamente nos próximos anos. É preciso um desenvolvimento responsável e transparente da tecnologia e uma enorme quantidade de boas informações. “Pode ser que a gente tenha modelos de inteligência artificial que sejam focados na maldade”, sugere Crespo. “É que ninguém parou para fazer isso ainda ou talvez ninguém tenha tanto dinheiro para isso.”

Alguns acreditam que a solução seria educar a população para não acreditar tão facilmente no que veem nas redes sociais e agora na inteligência artificial. No mundo ideal, isso resolveria o problema. Mas isso simplesmente não vai acontecer e as pessoas continuarão sendo manipuladas, agora possivelmente ainda mais.

Os já citados atores precisam dar as mãos para evitar o pior. Os veículos de comunicação devem alimentar a IA, mas de maneira justa, sem que isso ameace sua sobrevivência. As big techs precisam se abrir a esses acordos financeiros e se esforçar muito mais na transparência de seus sistemas e no respeito aos usuários e à própria democracia. E a Justiça precisa encontrar meios de regular tudo isso, sem ameaçar o avanço tecnológico.

Em um mundo tão digitalizado, a democracia depende do sucesso dessa união.

 

Um dos problemas derivados da queda na confiança na imprensa é a crescente agressão a jornalistas – Foto: reprodução

As razões para mordermos a mão que nos alimenta

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Um dos sinais da falência de uma sociedade é quando as pessoas deixam de acreditar nas instituições democráticas. Quando não se confia em nada ou em ninguém, perde-se a capacidade essencial de se buscar o bem comum com o outro. Por isso, pesquisas recentes do prestigioso instituto Pew Research Center, que demonstram a baixa confiança da população na imprensa, me impactam, mas não me surpreendem. E isso é um sintoma que deveria preocupar todo mundo.

Segundo os levantamentos, apenas 38% dos americanos adultos se informam “o tempo todo ou quase o tempo todo”. Além disso, só 15% acreditam “muito” e 46% “um pouco” nos veículos jornalísticos nacionais. Em compensação, 14% buscam notícias no TikTok (32% entre os que têm de 18 a 29 anos), que ainda fica atrás do Instagram (16%), do YouTube (26%) e do Facebook (30%).

O mesmo instituto já havia indicado que o aumento de informações nas redes sociais é inversamente proporcional a sua qualidade, e que o público que as utiliza como principal fonte de informação é menos engajado, informado e capaz de demonstrar bom discernimento, se comparado a quem se informa pela imprensa.

Pelas minhas observações, arriscaria dizer que temos números semelhantes no Brasil.

Todos perdem muito com esse divórcio entre a imprensa e seu público, e cada um tem seu papel e razões. Mas isso precisa ser revertido! As bolhas de pensamento único, que nos maltratam diariamente, impedem que vivamos em uma sociedade com cidadãos mais conscientes e capazes de se desenvolver.


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Há mau jornalismo hoje, como sempre houve, porém, há mais bom jornalismo que mau na mídia profissional. Entretanto parte da população aprendeu a ver só o que a desagrada, generalizando como se toda a imprensa fosse pouco confiável.

Vale notar que, até o início do século, não se questionava a importância do jornalismo para o desenvolvimento pessoal. Uma boa informação era um diferencial que resultava em melhores empregos e outras oportunidades na vida. Ler jornais era sinônimo de pertencer à elite intelectual, mesmo que não fosse da elite econômica. E ser jornalista era uma das profissões mais desejadas pelos jovens.

A grande diferença é que, com a ascensão das redes sociais, os veículos de comunicação deixaram de ser os únicos capazes de trazer notícias. Todos nós nos tornamos mídia e somos capazes de produzir enormes quantidades de informação (o que é muito diferente de notícia). Diante disso, muitos grupos de poder descobriram uma nova maneira de dominar as massas, mas, para isso, precisavam usar o meio digital para desacreditar a imprensa, que teima em lhes fiscalizar.

O combate à mídia pelos poderosos não é algo novo: apenas ganhou escala com o meio digital. Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, foi essencial para seu poder, ao criar uma máquina de silenciar a imprensa e vozes dissonantes. Décadas depois, o venezuelano Hugo Chávez contribuiu com o processo, criando a ideia de que, se a mídia fosse contra ele, seria “contra o povo”. E demonstrando que o combate à imprensa não segue ideologia, Donald Trump se notabilizou por ignorar solenemente a verdade e usar o meio digital para impor seus interesses como fatos.

O Brasil também deu suas contribuições. Lula, desde seu primeiro mandato, desqualifica a imprensa e tenta lhe impor seu “controle social”. Jair Bolsonaro, por sua vez, instituiu ataques explícitos a jornais e jornalistas, especialmente mulheres, incendiando a população contra a mídia.

Como resultado, as pessoas só querem ver conteúdos que afaguem seu ego e concordem com seus pensamentos. E essa é uma perigosa zona de conforto.

 

Desagradando seu público

Mas o jornalismo não é feito para agradar. Na verdade, se estiver desagradando alguém, deve estar fazendo um bom trabalho.

Todo governo gostaria de ter uma imprensa dócil. Mas, se fizer isso, não é jornalismo: é relações públicas. Ela deve informar e formar o cidadão e protegê-lo dos interesses de grupos políticos, econômicos ou ideológicos, fiscalizando o poder.

Como disse certa vez o grande cartunista e jornalista Millôr Fernandes, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados.”

Às vezes, o jornalismo deve desagradar até seu próprio público, para forçá-lo a sair daquela zona de conforto perversa. Mas quando tudo vira “pão e circo”, isso coloca os veículos em uma situação delicada: como fazer isso se as pessoas –cada vez mais intransigentes– já estão “com um pé para fora” do jornalismo?

Os veículos têm sua culpa, ao se desconectar dos anseios e da linguagem do público. A distribuição e até seu modelo de negócios também estão ultrapassados. Diante disso, não é de se estranhar que tão pouca gente confie no jornalismo e menos ainda esteja disposto a pagar por ele. Os veículos de comunicação e seu público não conseguem mais ler os sinais uns dos outros.

Permitam-me aqui uma analogia abusada: um animal de estimação amoroso pode morder quem o alimenta como forma extrema de comunicar seu descontentamento. Um dos principais motivos é o animal não entender os sinais do tutor. Nesse caso, fica difícil saber quem é o cachorro e quem é o tutor, pois público e imprensa dependem um do outro, e nenhum está conseguindo entender os sinais alheios.

Mas em tempos tão sombrios e confusos, ambos precisam reaprender isso. Como qualquer atividade humana, o jornalismo é imperfeito, e essa atual situação faz com que sua margem de erro esteja reduzidíssima. Ele precisa ouvir novamente as demandas e falar a linguagem do público.

As pessoas, por sua vez, precisam colaborar, reconhecendo que, sem jornalismo profissional, perderiam elementos essenciais no seu cotidiano. Não saberiam, por exemplo, dos escândalos do governo atual, do anterior e de qualquer outro, ou as diferentes perspectivas sobre a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e o Hamas. Não teriam se vacinado contra a Covid-19 (e muitíssimo mais gente teria morrido), e não conheceriam as potencialidades da inteligência artificial ou os riscos das redes sociais. Não saberiam dos bastidores dos filmes importantes, e nem compreenderiam a crise da Seleção Brasileira. Tudo isso se fala nas redes sociais, mas é o jornalismo que descobre, noticia e explica.

Não há atalho: a imprensa precisa se reconectar com o seu público e vice-versa. É preciso reconquistar a confiança perdida! Isso não se faz com “caça-cliques”, mas com seriedade e transparência.

O jornalismo não pode se render à lógica perversa das redes sociais, que disseminam ódio, intransigência e o pensamento único. A confiança é uma via de mão dupla e benéfica para toda sociedade. Mas ela só existe quando todos estiverem dispostos a falar e ouvir civilizadamente, sem morder a mão um do outro.

 

Mãe beija criança na Faixa de Gaza, de onde saíram os ataques terroristas do Hamas - Foto: Libertinus/Creative Commons

Mais que mísseis, bombas e balas, a guerra hoje é feita também com imagens, palavras e versões odiosas

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Desde o dia 7, o mundo assiste horrorizado à mais recente escalada da violência em Israel e na Palestina, deflagrada pelo ataque dos terroristas do Hamas, que cobrou milhares vidas dos dois lados até agora. Mas esse conflito não está acontecendo apenas na região da Faixa de Gaza: ele invadiu o mundo todo a partir das redes sociais, em uma guerra de versões recheada de palavras e imagens aterrorizantes.

Isso vem servindo de munição para grupos políticos e ideológicos que inescrupulosamente usurpam a barbárie para impor sua visão de mundo. Essas mensagens invadem nossas vidas a partir de computadores e celulares, inflamando pessoas que sequer entendem o que está acontecendo no Oriente Médio. Isso aumenta ainda mais a dor daquele confronto interminável, movido pelo ódio e pela intolerância dos radicais de ambos os lados.

Guerras não são ganhas apenas no campo de batalha: os vencedores também precisam conquistar corações e mentes da opinião pública. Desde a Primeira Guerra Mundial, isso vem acontecendo de maneira cada vez mais intensa e rápida, com o avanço da imprensa e da tecnologia. Mas a também horrenda invasão russa na Ucrânia inaugurou um novo tipo de “cobertura”, feita diretamente do front por combatentes, assim como pela população civil, com seus celulares. A fase atual do conflito israelo-palestino cristalizou isso.

Nesse fogo-cruzado ideológico e digital, as pessoas são praticamente forçadas a escolher um lado. Como palestinos e israelenses possuem seus argumentos, é importante desqualificar o inimigo, para angariar a simpatia internacional. Mas como a maioria da população não tem acesso a informações confiáveis e equilibradas, o que poderia ser um debate construtivo em busca da paz se torna uma arena de insultos.

Aqui o conflito não faz mortos como lá, mas o tecido social fica esgarçado pela ignorância!


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Um triste exemplo aconteceu na terça passada (10), em um debate sobre as causas do conflito, organizado pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ. Mediado pela professora Monica Herz, ele reuniu Márcio Scalercio, docente do departamento, Nizar Messari, da Al Akhawayn University (Marrocos), e Michel Gherman, pesquisador da UFRJ, do centro de estudos de Sionismo e Israel da Universidade Ben Gurion do Negev, e do Centro Vital Sasson de Estudos do Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém, além de coordenador acadêmico do Instituto Israel-Brasil.

Em sua fala, Gherman, condenou veementemente o ataque do Hamas como um ato terrorista. Tentou explicar as consequências nefastas disso aos próprios palestinos e expôs a necessidade de negociação com a Autoridade Nacional Palestina. Por isso, foi agredido por um grupo de alunos, que o acusavam de ser simpático ao Hamas e –pasmem– de ser antissemita.

Diante da impossibilidade de continuar sua fala, Gherman deixou o evento. “Eu vou embora, vocês ganharam”, disse ao sair. Apesar dos protestos de Herz pelo ocorrido, o debate virou um Fla-Flu ideológico entre os alunos.

O “pecado” de Gherman foi não ter destilado um ódio visceral contra o Hamas, apesar de ter deixado bastante claro que classificava o grupo como terrorista. Mas para a turma cega pelo ódio, qualquer um que não se comporte dessa forma deve ser silenciado. As vozes do bom-senso não lhes servem de espelho e pertencem ao “inimigo”.

É nessas horas que os estilhaços da guerra atingem o mundo todo. Quando perdemos a capacidade de dialogar civilizadamente com quem pensa de maneira diferente, o terror ameaça sociedades que suas bombas não conseguem atingir.

 

Streaming de terror

A imprensa profissional filtra o que publica, evitando fake news e conteúdos demasiadamente brutais, que visam aumentar o ódio até daqueles que mal entendem o que está acontecendo. As redes sociais, por outro lado, servem como gigantescos dutos descontrolados e se prestam à polarização irracional.

A ONU (Organização das Nações Unidas) declarou ter “claras evidências” de crimes de guerra e uma enorme quantidade de relatos de mortes de civis por grupos armados dos dois lados, que as propagandeiam pelas plataformas digitais. Eles buscam colher apoio para seus atos e aterrorizar a população do inimigo. E crianças e jovens acabam sendo bombardeados por isso, sem o mínimo preparo para lidar com tanto terror, servindo para depois engrossarem as fileiras da intolerância de todo tipo.

Os terroristas digitais são muito mais rápidos e numerosos que a imprensa. Além disso, como não têm nenhum compromisso com a verdade, usam não apenas imagens reais da guerra, como também conteúdo fora do contexto e ainda material gerado por inteligência artificial. A partir disso, aqueles que se identificam cegamente com qualquer dos lados se encarregam de espalhar o terror, seja verdadeiro ou falso.

Extremistas dos dois lados esperam exatamente que isso aconteça e seja normalizado, a ponto de ser apoiado. Isso não pode acontecer, pois cada grupo busca reescrever a história que ainda está sendo vivida, mas com suas ideias!

Não haverá paz enquanto extremistas dominarem os opostos no conflito. Para eles, massacres dos dois lados da fronteira servem para reforçar suas posições, entrincheirando-se no poder. Talvez essa seja a maior aberração dessa barbárie.

Nessa guerra em que a ideologia mata tanto quanto tiros, as imagens perderam sua capacidade de retratar a verdade. Pelo contrário, elas só mostram aquilo que quem as postou deseja impor. E por isso não é nenhuma surpresa ver a imprensa profissional sendo alvejada pelos mesmos grupos, por insistir em não apenas trazer os fatos, mas explicá-los para todo mundo, especialmente para quem sempre achou a crise entre palestinos e israelenses algo incompreensível, distante e desimportante.

O terrorismo não pode ser normalizado, relativizado ou aceito. Da mesma forma, o extremismo é o grande inimigo da paz, pois ele não ouve a voz do outro ou sequer aceita sua existência.

Quanto a cada um de nós, no conforto de nossas telas, precisamos entender que a vida não é binária. As pessoas não podem escolher um lado do conflito como quem decide para qual time torcerá, especialmente quando sua própria equipe foi desclassificada. Sabemos que a intolerância mata até nas torcidas organizadas.

 

Navio com refugiados é resgatado no Mediterrâneo - Foto: Wikimedia / Creative Commons

Qual vida vale mais: a de um bilionário ou a de um refugiado?

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Você sabe qual a diferença entre um submarino e um submersível? Ou que a pressão no fundo do mar, onde jazem os destroços do Titanic, é 400 vezes maior que a da superfície? E que isso provocou a implosão do Titan, matando cinco ricaços que estavam nele no dia 18?

Se você acompanhou o noticiário por qualquer meio na semana passada, provavelmente pelo menos ouviu falar sobre isso tudo. A cobertura do acidente inundou todos os veículos de comunicação.

Mas você sabe que, poucos dias antes, o naufrágio de um barco hiperlotado de refugiados matou centenas de pessoas nas costas da Grécia, criando aquela que talvez seja a maior tragédia do Mediterrâneo?

Não se sinta mal se souber do primeiro e não do segundo caso. O espaço dado pela mídia para a tragédia do pesqueiro foi muitíssimo menor que o dedicado ao acidente do submersível. O mesmo aconteceu no mundo-cão das redes sociais.

Esse não é um problema só da imprensa, apesar de ela ser essencial para a melhora desse quadro. Porém nós, o público, temos um papel fundamental em algo que impacta a nossa vida, mesmo estando do outro lado do mundo.


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O valor de uma vida humana é imensurável, qualquer vida. Por isso, os dois acidentes são tragédias a serem muito lamentadas. Mas não se pode ignorar que, se os cinco ocupantes do Titan morreram, do pesqueiro que saiu do Egito em direção à Líbia com estimadas 750 almas, apenas pouco mais de cem foram resgatadas com vida e outra centena de corpos foram encontrados. Um número incerto de outras vítimas fatais, talvez 500, se perdeu no mar. Vale dizer que, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações, quase 27 mil migrantes desapareceram no Mediterrâneo desde 2014!

A desigualdade não se dá apenas no espaço dedicado às duas tragédias na imprensa e nas redes sociais. Talvez ainda mais absurdo tenha sido o empenho nos resgates. Investigações apontam que as autoridades gregas foram lentas em reagir no caso do pesqueiro, o que aumentou dramaticamente a taxa de mortos. Enquanto isso, as guardas-costeiras dos Estados Unidos e do Canadá, além de várias embarcações particulares, tentaram resgatar o Titan, um esforço que custou milhões de dólares e que será pago, pelo menos em parte, pelos contribuintes desses países.

Tudo recai sobre porque nos interessamos tanto por tragédias como a do Titan e ignoramos a do pesqueiro.

As redes sociais sempre destacarão, para cada um de seus bilhões de usuários, aquilo que chama mais a sua atenção, mesmo que seja algo horrível. A frieza de seus algoritmos não tem nenhum compromisso com o bem-estar social ou mesmo com a verdade: ele exibirá mais aquilo em que há mais chance de clicarmos. Daí surgem as infames “bolhas”, que racharam a sociedade ao meio nos últimos anos, reforçando as crenças de cada um, mesmo as piores.

Vale dizer que até hoje, mais de uma semana depois do acidente, continuo vendo postagens sobre o Titan nas redes. Mas eu não vi nenhum usuário dedicar algumas linhas aos refugiados. As poucas publicações nessas plataformas foram feitas justamente por veículos de comunicação.

Resta saber então por que esses mesmos veículos seguiram essa desigualdade.

 

A banalização da “morte sem rosto”

Existem algumas regras para que uma notícia chame a atenção do público e assim ganhe destaque na imprensa. Uma dela é o ineditismo, e, convenhamos, não é sempre que um submersível com bilionários querendo passear no Titanic implode. O próprio Titanic estar envolvido também desperta muito a curiosidade. E há ainda sentimentos “menos nobres”, como achar graça de ricaços que pagam uma fortuna para visitar os destroços do naufrágio mais famoso da história (ocorrido em 1912), em uma embarcação com falhas críticas de projeto. Algumas pessoas talvez até quisessem ter tentado aquilo!

No caso dos refugiados, o naufrágio não tinha nenhum desses elementos. O público os despreza poque sente que eles acontecem “a toda hora”, matando pessoas sem nome, rosto, origem, destino ou motivação. Mas não é nada disso! Essas pessoas deixam para trás seu país para salvar a própria vida, fugindo de guerras, terrorismo, perseguições religiosas e outras atrocidades que a humanidade produz.

Isso é tão verdadeiro que, de vez em quando, a tragédia ganha um rosto, chocando o mundo todo. Foi o caso dos ucranianos, que saíam da própria Europa, fugindo da invasão russa. Ou da foto de uma criança refugiada que apareceu morta com sua camiseta vermelha e short azul, na costa da Turquia em 2015. A foto do seu rosto sendo encoberto pela onda na areia provocou uma comoção global pela crise dos refugiados… que infelizmente foi logo esquecida depois.

Esse desprezo não acontece só com quem está do outro lado do mundo. Acontece diariamente na nossa cidade, na nossa rua. Às vezes, tratamos de ignorar a morte até de alguém em nosso condomínio. Afinal, “não é ninguém próximo”.

Até que acontece conosco!

A imprensa “entrou no automático” nesse tipo de decisão editorial há muito tempo. Não chega a ter frieza criminosa dos algoritmos das redes sociais, mas acaba colaborando com a desumanização da sociedade.

Sei que não é possível noticiar todas as mazelas do mundo, mas é preciso mais consciência quando se destaca a morte de cinco bilionários enquanto se varre para o rodapé a maior tragédia marinha do Mediterrâneo.

A imprensa tem o papel de informar, mas também de formar a população. E, salvo em algumas exceções, vem falhando nesse segundo, entregando o público à manipulação dos abutres das redes sociais. Esses chegam ao absurdo de não apenas desprezar a dor alheia, como promover isso!

A vida não tem que ser assim. Não deve ser assim! Quem quer que sejamos, não podemos achar que o problema nunca chegará a nós por não nos envolvermos.

Não dá para se blindar. Os bilionários do Titan acharam que dava. E implodiram.

 

A Bruxa dá a maçã envenenada à Branca de Neve, no primeiro longa-metragem animado da história (1938) - Foto: reprodução

Quem matou a veia criativa da Disney?

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Desde que lançou “Branca de Neve e os Sete Anões” em 1938, Walt Disney elevou o conceito das animações a um patamar altíssimo, sendo responsável por algumas das maiores obras-primas do gênero. Seu sucesso se deve a sua obsessão pela excelência.

Infelizmente não dá para manter a barra no alto o tempo todo: de vez em quando, o estúdio fazia algo que não fosse tão incrível. Mas isso é diferente do que se observa agora: uma aparente decisão de trocar a qualidade pela quantidade.

Já faz muito tempo que a Disney não faz nada que seja realmente memorável. A empresa está se especializando em “live actions” –filmes com atores humanos que reproduzem antigos sucessos de animações– sem nenhuma criatividade, até piorando a história para que fique mais palatável ao mercado. Um exemplo disso foi o remake de “Mulan” (2020).

A mais recente vítima da nova política é a recém-lançada animação da outrora brilhante Pixar, “Elementos”, que teve a pior bilheteria de estreia da história do estúdio. Depois de custar US$ 200 milhões, rendeu “míseros” US$ 29,5 milhões nos EUA no fim de semana de estreia. Para comparação, “The Flash”, da Warner Bros, que também está decepcionando, rendeu US$ 55,1 milhões na estreia por lá.

Esse resultado é emblemático, porque a Pixar foi comprada pela Disney em 2006, em uma época em que a última passava por uma seríssima crise criativa, com lançamentos como os pavorosos “Nem Que a Vaca Tussa” (2004) e “O Galinho Chicken Little” (2005). Naqueles anos, a Pixar lançava os fabulosos “Os Incríveis” (2004) e “Carros” (2006).

A compra provocou uma transferência de cérebros para a casa do Mickey, especialmente de John Lasseter, que havia sido demitido da própria Disney em 1983 por querer apostar em animação computadorizada. Voltou como diretor criativo da Pixar e da Walt Disney Feature Animation (depois rebatizada como Walt Disney Animation Studios). Aquilo foi um sopro de inteligência e criatividade, gerando bons títulos para a Disney, como “Enrolados” (2010), “Detona Ralph” (2012) e “Frozen” (2013).

A empresa fez outras duas mega-aquisições para seu portfólio nos anos seguintes: comprou a Marvel (2009) e a Lucasfilm (2012), duas marcas que pareciam ter um “toque de Midas”, produtoras de enormes sucessos em sequência.

E então a coisa começou a desandar de novo.

 

Sai a qualidade, entra a quantidade

Sou um fã histórico de “Star Wars”, daqueles que faz citações dos filmes no cotidiano. Ou fazia: sob o comando da Disney, a saga da família Skywalker pariu filmes enlatados de consumo fácil e qualidade sofrível.

Quando o primeiro deles saiu em 2015, “Episódio VII: O Despertar da Força”, trouxe ideias interessantes: uma protagonista jedi, um stormtrooper negro que mostrava o rosto (literalmente) e com crise de identidade, o resgate dos velhos heróis e cenários mais realistas. Infelizmente pouco disso foi bem desenvolvido, sofrendo ainda com um vilão fraco e um roteiro com buracos. Era o prenúncio para o catastrófico “Episódio VIII: Os Últimos Jedi” (2017) e o fraco “Episódio IX: A Ascensão Skywalker” (2019).

Como resultado, aconteceu o inimaginável: perdi o interesse que tinha em “Star Wars”.

Algo semelhante aconteceu com a Marvel. Depois de anos com uma enxurrada de sucessos, começando pelo “Homem de Ferro” (2008) e culminando em “Vingadores: Ultimato” (2019), o selo tem lançado títulos que não empolgam a base de fãs como antes.

Várias coisas levaram a essa relativa queda da Pixar, da Lucasfilm, da Marvel e da própria Disney. Em primeiro lugar, há um êxodo de cérebros da empresa, que a deixam reclamando de más condições de trabalho. Os prazos ficaram tão exíguos, que os artistas estão tendo que piorar a qualidade dos efeitos especiais, pois não há tempo para os computadores gerá-los como gostariam.

Mas há claramente a política da quantidade a qualquer custo. E aí entra um outro fator determinante: o serviço de streaming Disney+, lançado em 2019. Sua principal força é também seu calcanhar de Aquiles: ele possui todo o conteúdo da Disney, da Pixar, da Marvel, de Star Wars e da National Geographic. E só!

Ele chegou tarde a um mercado amplamente dominado por rivais estabelecidos, liderados pela Netflix. Com força bruta, cavou o seu espaço entre eles. Mas, para isso, precisou iniciar uma corrida frenética de produção de filmes e principalmente séries dessas marcas, muitas delas descartáveis.

Outra decisão polêmica tem afastado o público que não assina a Disney+: a decisão de lançar longas-metragens apenas no streaming, ignorando as salas de cinema. Foi o caso de três títulos da Pixar seguidos: “Soul: Uma Aventura com Alma” (2020), “Luca” (2021) e “Red: Crescer É uma Fera” (2022).

De todas as marcas da casa, a Pixar é justamente a que vem se esforçando mais para manter o nível. Tanto que, apesar da bilheteria decepcionante, “Elementos” conseguiu do público uma nota A nas pesquisas do CinemaScore e ficou com 91% no índice Rotten Tomatoes, na manhã de domingo de estreia. É bom, mas está abaixo do índice na estreia de grandes sucessos da Pixar. E precisamos verificar se se manterá quando o público “menos fã” começar a votar.

O mercado cultural e até Wall Street estão preocupados com essas decisões da Disney. O primeiro lamenta a queda na qualidade média das produções a um nível abaixo da crítica. Já a turma dos investimentos quer saber como isso impactará os negócios desse colosso do entretenimento.

Walt Disney criou seu império apostando na qualidade e fazendo o que os outros não conseguiam para encantar o público. Deve estar se revirando no túmulo ao ver que as ainda existentes boas ideias vêm sendo diluídas em um oceano de filmes e séries de fórmulas fáceis e decisões de negócios que afastam o público de suas produções.

Para uma empresa que nasceu com histórias baseadas em contos de fadas, seus gestores deveriam prestar atenção na fábula de Esopo sobre a “galinha dos ovos de ouro”. Ela conta a história de um casal de camponeses que tinha uma galinha que diariamente botava um ovo de ouro! Movidos pela ganância e achando que no interior do animal haveria grande quantidade do metal, eles a matam. Só para descobrir que, nas entranhas, era como qualquer outra galinha, ficando sem sua dose diária de ouro.

Do jeito que está, sinto que os executivos da Disney já estão amolando a faca…

 

Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura e jornalista, que chamou o jornalismo “o melhor ofício do mundo” - Foto: reprodução

Por que a imprensa e a sua liberdade deveriam interessar a você

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Na quarta (7), comemora-se o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. O tema está “na boca do povo”, junto com a afamada liberdade de expressão. Ainda assim, pouca gente sabe o que é de fato ou para que serve, especialmente porque, de uns anos para cá, parte da população perdeu sua fé no jornalismo. Isso traz um enorme risco à sociedade! Por isso, aproveito a data para tentar explicar por que um bom relacionamento entre a imprensa e seu público é essencial para todos.

Em primeiro lugar, é preciso definir para quem o jornalista trabalha. Não é para nenhum governo, nem empresas, nem mesmo anunciantes: é para seu público! Ficar sem anunciantes pode quebrar um veículo, especialmente quem ainda adota um modelo de negócios “mais tradicional”. Entretanto, ficar sem público é a sentença de morte para qualquer veículo. Ele é a sua razão de existência!

Como pretendo demonstrar, uma imprensa livre, vigorosa e comprometida é condição para uma sociedade vibrante e próspera. Aí mora nosso problema! Parte dessa desconexão atual se deve a alguns profissionais e veículos de comunicação esquecerem para quem trabalham.

Isso me leva a outro tema que se popularizou recentemente em meio a muita desinformação: a busca pela objetividade. Diante da confusão que muitos colegas fazem em torno dela, seus detratores aproveitam para exigir algo que, se fosse possível alcançar daquela forma, seria um grande desserviço à população.


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De uns anos para cá, muitos colegas abraçaram a ideia de que, pela sua própria humanidade, é impossível ser totalmente isento e objetivo. Isso é verdade: todas a pessoas são movidas por paixões e, portanto, sempre teremos nossas preferências em qualquer tema. Mas, no jornalismo, isso não pode servir para afrouxar a busca da verdade incluindo pontos de vista conflitantes com os seus. Ao fazer isso, muitos jornalistas caem em uma militância, seja real ou apenas aparente.

Isso dá munição àqueles que se beneficiam com o enfraquecimento da imprensa, pois vivem da mentira e da desinformação. Eles propagam a ideia de que o jornalismo deveria se limitar a “contar os fatos”, deixando que as pessoas tirassem suas conclusões. Na verdade, só querem a liberdade para distorcer esses fatos brutos para criarem narrativas que lhes sejam favoráveis.

É nessa hora que o bom jornalismo brilha e protege a sociedade! Ele não pode se limitar a “contar os fatos”: ele precisa explicá-los, contextualizá-los, sempre norteado pelo interesse do público e pela “verdade possível”. A combalida objetividade é sua ferramenta! Não aquela utópica, que só existiria em uma máquina, mas a melhor imparcialidade dentro das limitações humanas e de esforços sinceros.

Isso cria uma armadilha. Na ânsia de apresentar todos os lados de um tema com igual peso, jornalistas podem ironicamente criar visões distorcidas da realidade, colocando, lado a lado, completos absurdos e fatos comprovados. A imprensa pode mencionar as bobagens se também explicar, de maneira equilibrada, porque aquilo não deve ser considerado. Não podem cair na arapuca da falsa equivalência!

Quando falha nessa tarefa, permite o florescimento de teorias da conspiração, que podem ser catastróficas para a humanidade. Um exemplo é a de que vacinas seriam ineficazes e até perigosas, que recebeu um espaço muito maior que o devido na imprensa em nome de “ouvir o outro lado”. Por isso, muita gente acredita nessa aberração, e alguns grupos políticos até se beneficiaram disso.

A pandemia de Covid-19 foi uma dolorosa lição. Um enorme contingente desinformado deixou de se vacinar e, por conta disso, morreu. A situação só não foi mais dramática porque, diante da tragédia em curso, a maioria dos jornalistas e veículos assumiu seu papel e informou corretamente a população para que se vacinasse.

 

Fazendo as perguntas certas

Podemos, nesse ponto, aprender algo com o afamado ChatGPT. Afinal, obtemos boas respostas dele se fizermos boas perguntas, e vice-versa.

Bons jornalistas são justamente treinados para fazer as perguntas certas. Por isso, o valor da reportagem precisa ser resgatado. Uma boa entrevista é uma ótima conversa; uma ótima entrevista é uma sedução em busca da verdade. Deve existir uma ânsia genuína de querer aprender algo, com a mente aberta.

Jornalistas são contadores de histórias da vida real. Isso não quer dizer que têm que agradar alguém, pois o mundo nem sempre é bonito. Mas uma verdade feia é melhor que uma mentira agradável! Costumo dizer que, se fossem contos de fadas, jornalistas os contariam como os Irmãos Grimm, e não como as adaptações fáceis da Disney.

Vivemos em um mundo de obviedades e mesmice. Elas nos embrutecem, eliminam nossas individualidades e nos transformam em massa de manobra. O jornalismo protege a sociedade ao romper esse ciclo, contando as “histórias por trás das histórias”. Como escreveu em 1851 o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), “importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim pensar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo mundo vê.”

Ao contrário do que muitos imaginam, não é um trabalho fácil de um bando “apenas contando o que viu e dando sua opinião”. Em 1996, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), Nobel de Literatura e também jornalista, disse, sobre o jornalismo, que chamou de “o melhor ofício do mundo”, que “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver apenas para isso poderia persistir em uma profissão tão incompreensível e voraz, cujo trabalho se encerra a cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede um momento de paz até recomeçar com mais ardor que nunca no minuto seguinte.”

Por isso, a liberdade de imprensa é um mecanismo celebrado em todas as democracias. Os jornalistas não são perfeitos (como ninguém é), mas são a última frente de resistência da sociedade contra os diferentes abusos de poder e, por isso, precisam ser protegidos.

Na verdade, precisamos ir além. Mais que “contar fatos”, esse trabalho deve ser encharcado de inteligência e de boa vontade, vibrando com as pessoas que formam o público. Elas, por sua vez, devem apoiar esses profissionais, em uma bem-vinda simbiose.

Fora disso, não há jornalismo: resta apenas a barbárie das redes sociais. E aí salve-se quem puder!

 

Elon Musk, CEO do Twitter, que relaxou o controle de conteúdo quando comprou a rede social - Foto: Daniel Oberhaus / Creative Commons

A marcha da insensatez nas redes sociais e a falência da sociedade

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Na última semana, um dos debates mais intensos no país foi a apuração da culpa das redes sociais no crescimento de ataques em escolas. Se já não bastasse a incredulidade diante de alunos e professores brutalmente assassinados, o posicionamento do Twitter em uma reunião de representantes das principais plataformas com o ministro da Justiça na terça provocou revolta. Entretanto, apesar daquela pavorosa declaração, precisamos olhar o problema sem simplificações.

Especialistas de educação e de saúde mental afirmam que a explosão de conteúdo nas redes sociais que menciona e até glorifica esses crimes serve como catalisador para novos atentados. Neste mesmo espaço, destrinchei o tema na semana passada. Mas como expliquei, apesar da contribuição dessas publicações para esses crimes, eles não podem ser atribuídos apenas a isso.

Ao longo da semana, conversei com profissionais de diferentes áreas sobre o caso. É um consenso que as redes sociais fazem muito menos do que poderiam e deveriam para o combate a esses crimes, como quando o Twitter disse naquela reunião que fotos de assassinos e de vítimas em posts não violariam as regras da rede ou sequer seriam apologia a crimes.

Muitos afirmam que retirar esse ou qualquer outro conteúdo seria censura. Alguns vão além e sugerem que esse movimento encobriria o interesse de um governo que, na verdade, estaria usando essa comoção para controlar a mídia.

São argumentos fortes, e eu até concordaria com isso, se as redes sociais fossem meios de comunicação tradicionais. Mas elas não são: sua gigantesca capacidade de nos convencer de qualquer coisa concentra o núcleo dessa discussão.


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Houve uma época em que eu era muito mais liberal sobre o que poderia ser publicado nas redes sociais. Eu as via como ferramentas que garantiam uma liberdade inédita ao cidadão para expor ideias em pé de igualdade com veículo de comunicação. Em 2015, cheguei a discordar publicamente do escritor e filósofo italiano Umberto Eco, quando ele disse que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, e que “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”

Quando alguém argumentava que essas plataformas deveriam ter alguma responsabilidade sobre o que seus usuários publicavam nelas, eu comparava isso com culpar o fabricante de um carro se ele fosse usado em um assalto a banco. Porém, à medida que fui estudando mais os algoritmos das redes sociais, fui percebendo que essa analogia era muito errada. Se os carros fossem como redes sociais, eles eventualmente convenceriam seus donos a roubar o banco!

A minha “fase mais liberal” com as redes sociais vinha do fato de usar essas plataformas desde suas primeiras aparições, como o Friendster e o Orkut, há cerca de duas décadas. Elas eram quase pueris, feitas para encontrar velhos amigos e conhecer gente nova. Todo mundo “brincava” ali, sem ofensas, sem medo, sem ódio.

E tudo isso porque tampouco existiam algoritmos de relevância, popularizados pelo Facebook em 2014. São eles que escolhem o que seus bilhões de usuários veem nas redes. Mais que isso, para que as pessoas se sintam “confortáveis”, exibem apenas conteúdos de que elas gostem, prendendo cada um de nós nas infames “bolhas”.

Ao fazer isso, as redes sociais se transformaram nas ferramentas perfeitas de convencimento de qualquer coisa, até mesmo para se cometer um crime bárbaro.

É nessa hora que “o carro pode induzir seu dono a roubar o banco”.

 

A responsabilidade de cada um

As redes sociais estão na berlinda. Diante de sua apatia, o governo quer que as empresas criem canais para rápida remoção de conteúdo ligado a esses crimes, e ameaça com multas e até bloqueios a quem não colaborar.

“O governo tem na lei os limites aos quais suas ações podem chegar, e não pode haver liberdade para multar ou banir sem a devida previsão legal”, explica Márcio Chaves, sócio da área de Direito Digital do Almeida Advogados. No caso brasileiro, há o Marco Civil da Internet, que prevê que uma plataforma digital seja responsabilizada por um conteúdo apenas se não o remover após uma ordem judicial. “Esse limite foi imposto justamente para evitar a censura prévia e não jogar para o provedor essa obrigação”, acrescenta.

Mas Chaves acredita que a legislação dificilmente dará conta de todas as situações em que a segurança da sociedade seja ameaçada por uma suposta “liberdade de expressão”. Segundo ele, “por isso é tão importante estimular um ambiente não de imposição, mas de cooperação entre as empresas e a administração pública, no qual ferramentas tecnológicas, conselhos de supervisão, e autoridades judiciais possam endereçar situações sensíveis como a que estamos passando agora com os ataques nas escolas, em uma velocidade mais compatível com a que estamos sujeitos com o uso das tecnologias digitais”.

O debate sobre mais responsabilidade para as redes sociais acontece há alguns anos no Brasil. Ele está, por exemplo, no Projeto de Lei conhecido como “PL das Fake News” e em sugestões de atualização do Marco Civil da Internet. No geral, pede-se que essas plataformas sejam mais atuantes e efetivas na identificação de discurso de ódio, desinformação e outros crimes em suas páginas, removendo esse conteúdo sem necessidade de uma ordem judicial, mesmo não sendo obrigadas a isso.

O grande risco é se criar uma espécie de “censura algorítmica”, com essas plataformas eliminando equivocadamente conteúdos legítimos. É verdade que a tecnologia para essas identificações vem progredindo a passos largos, inclusive com o apoio da inteligência artificial, mas ela ainda não é garantida.

Precisamos encontrar mecanismos eficientes para coibir a escalada de crimes incentivados nas redes sociais, sem criar outros problemas. O que não pode acontecer é uma empresa não remover um conteúdo de ódio “porque não violaria seus Termos de Uso”, como disse o Twitter. Chaves lembra que eles “são contratos entre a plataforma e o usuário, e só há liberdade contratual se não for contrária à lei”.

Sobra o temor de o governo usar isso para controlar a mídia. Todos governantes desejam isso, em alguma escala. Antes se restringia à imprensa, mas ela, ainda que independente, obedece a leis. Além disso, o jornalismo profissional segue um Código de Ética, que faz com que sua produção, ainda que às vezes falha, tenha um mínimo de qualidade. Já as redes sociais parecem ser guiadas apenas pelos seus interesses.

Por fim, isso não pode virar uma discussão político-partidária, como muitos já têm feito. Tampouco há espaço para deixar tudo como está, pois o discurso de ódio nas redes agrava o problema de fato. Essas empresas devem abandonar sua complacência, para evitar medidas mais drásticas. E a sociedade precisa ficar vigilante para que nenhum governo use o pânico para controlar qualquer mídia.

 

Anúncio da Bauducco na Times Square, em Nova York: empresa precisou explicar o que é panetone aos americanos – Foto: divulgação

Internacionalizar marca traz benefícios, mas exige cuidados

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Todo mundo sabe o que é um panetone, certo? Talvez isso seja verdade no Brasil, mas não é nos Estados Unidos, onde esse tradicional bolo não faz parte do cardápio de Natal. Por isso, quando a Bauducco decidiu atuar no mercado norte-americano, ela não podia simplesmente fazer propaganda de seu produto: ela precisava explicá-lo à população.

Esse é um desafio típico de um processo de internacionalização de uma marca. Em um mundo globalizado, muitas empresas tentam repetir em outros mercados o sucesso que detêm no seu país de origem. Mas fórmulas consagradas ali podem simplesmente não funcionar em outros locais.

“Em 2014, ninguém sabia o que era panetone nos Estados Unidos, então tivemos que desenvolver a categoria, torná-lo conhecido e cair no gosto do americano”, explica Valter Klug, CEO da agência Samba Rock, especialista em expansão internacional de marcas. “Era um desafio muito maior do que simplesmente comunicar uma marca em um outro mercado.”

Atuar em outros países pode trazer muitos benefícios. O mais óbvio é a abertura de novos mercados para a marca, especialmente quando o país de origem estiver com a categoria saturada. Além disso, a diminuição da dependência de um único mercado protege o negócio de sazonalidades e instabilidades econômicas locais. Um negócio internacional também ganha reputação e experiência, tonando-se mais moderno, competitivo e sustentável

Além disso, desbravar uma categoria em um novo mercado pode ser muito atraente, pois, caso a operação seja bem-sucedida, a marca pode ficar sozinha nela por um bom tempo, consolidando sua imagem e vendendo sem concorrência. Isso dura até que outras empresas consigam se organizar. Foi o caso da Bauducco com seus panetones nos EUA: hoje é a principal marca associado ao produto no país, mas agora enfrenta concorrência.

A internacionalização não é para qualquer um. É preciso ter em mente que mesmo uma marca estabelecida e bem-sucedida em seu país de origem precisa de planejamento para entrar em um novo mercado. É um investimento de longo prazo, não servindo para “aventureiros”.

“A grande maioria das marcas que vai para os Estados Unidos acaba quebrando no primeiro ano, porque não planejaram direito ou porque não havia mercado para elas”, explica Klug. “Às vezes você tem até que adaptar o seu produto”, acrescenta o executivo.

O planejamento também envolve alinhar expectativas. Gestores de grandes empresas precisam entender que, ao chegar a um novo mercado, eles serão praticamente startups. A maturação do negócio e o retorno do investimento inicial pode levar meses ou até alguns anos.

“O pessoal vem para cá e acha que, em um mês, vai sair vendendo tudo, vai colocar na Amazon e todo mundo vai comprar”, exemplifica Klug. Como isso não acontece, muitos acabam cancelando a operação no novo país, perdendo dinheiro. “Não é algo do dia para a noite!”

Contar com a visão de alguém que conheça bem o novo mercado ajuda muito no processo de internacionalização. Trabalhando junto com a equipe da empresa, que conhece seu produto, esses profissionais podem fazer ajustes nas ofertas, criando uma estratégia global de comunicação que seja consistente. Saber das particularidades de cada local pode fazer o negócio ser um sucesso ou um fracasso.

Quando se pensa em expandir o negócio para além das fronteiras, o mercado americano costuma ser a escolha preferida, seja pelo seu tamanho, grandes oportunidades, menos impostos e menos burocracia. Muitos empresários também conhecem o país. Mas uma experiência pessoal, por exemplo como turista, mesmo que recorrente, é muito pouco para dar certo empresarialmente.

Isso reforça a importância do apoio de profissionais com experiência nas peculiaridades locais. É preciso atéestar preparado até para o sucesso, no caso de receber um grande pedido (lembrando que os EUA são um país de consumo muito maior que o Brasil). Se a empresa não for capaz de atender a um primeiro grande pedido, “queima a largada” e talvez nunca mais venda para aquele varejista.

Outro exemplo emblemático de diferenças culturais é o uso do WhatsApp para se relacionar com os clientes. Plataforma digital onipresente nos smartphones dos brasileiros e canal de relacionamento preferido de muitas empresas e consumidores no país, o comunicador é pouco usado nos EUA. Lá os clientes preferem o Facebook Messenger e até o velho SMS. O empresário que não se atentar a essa diferença pode ter sérios problemas de relacionamento com seu novo público.

“Não basta ter um bom produto, é preciso conhecer o mercado, estudá-lo e criar um plano de negócios para sustentar a viabilidade do projeto”, conclui Klug. “Não é só fazer a tradução do que dá certo no Brasil.”

 

A pílula vermelha do filme “Matrix”, usada por grupos que abraçam realidades distorcidas pela Internet – Foto: divulgação

A Internet tem “memória de elefante”, mas alguns apagam seus crimes na realidade alternativa da rede

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Um estudo da empresa de cibersegurança NordVPN indicou que cerca de 20% dos brasileiros gostariam de ter todos os seus dados apagados da Internet. Infelizmente isso é impossível, pois a informação que cai na rede acaba sendo replicada em muitos locais, além de continuarmos deixando nossas “pegadas digitais” o tempo todo. Entretanto, como em outras coisas da vida, a regra parece só valer para o “cidadão comum”: para quem tem muito dinheiro, é possível até remover referências online a seus crimes.

O grupo internacional de jornalistas investigativos Forbidden Stories vem divulgando práticas que alguns bandidos ou simplesmente pessoas endinheiradas usam para alterar seu passado na Internet. Não é trivial ou barato e, na maioria dos casos, é ilegal e antiético. Empresas manipulam os algoritmos de buscadores e de redes sociais para os resultados não exibirem os fatos, mas sim o interesse de seus clientes.

Na prática, vivemos em uma realidade alternativa, em que todos os pecados parecem perdoados. Nossa presença online tornou-se uma ferramenta que nos arrasta para longe da verdade e manipula nossas emoções e comportamentos para proteger criminosos, enquanto nos faz de massa de manobra do poder. O grande risco é que essas versões fabricadas ultrapassem os limites do digital e se imponham sobre nossa vida.


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Essas práticas são primas-irmãs dos mecanismos de desinformação e fake news, que também distorcem a realidade para convencer uma legião de pessoas sobre um assunto do interesse de quem as publica.

Segundo o material da Forbidden Stories, uma das estratégias usadas por essas empresas de “lavagem de reputação” é a velha intimidação. Enviam e-mails a jornalistas, como se fossem autoridades, ameaçando-os de sanções graves caso não apaguem informações contra seus clientes. Outra, mais moderna, consiste em denunciar, com recursos das redes, publicações que exponham negativamente seus clientes, como se violassem direitos autorais. A expectativa é que os algoritmos das plataformas digitais apaguem suas referências a esses materiais.

Outra tática, ainda mais ousada, é criar muitas páginas elogiosas (e falsas) sobre seus clientes em sites pseudojornalísticos. Usando técnicas para aumentar a audiência desse conteúdo, os buscadores acabam empurrando as notícias verdadeiras para sua terceira página de repostas (ou mais), aonde raramente os usuários chegam.

Essa consciente alteração dos fatos no meio digital não serve apenas para apagar rastros de crimes na Internet. Seu poder de convencimento também se manifesta no surgimento de grupos sociais que defendem ferozmente ideias distorcidas como se fossem incontestáveis, colhendo algum benefício a partir disso.

Por exemplo, na semana passada, um dos assuntos mais destacados nas redes foi a série de ataques contra mulheres por homens que acreditam na submissão delas como caminho para que resgatem sua masculinidade. Esses grupos vêm crescendo nos últimos anos, graças a uma combinação de narrativas nos meios digitais.

Essas e outras organizações que distorcem a realidade de diferentes maneiras acreditam que foram “libertados” de um suposto controle da ciência, da mídia e de educadores. Afirmam ter escolhido a “pílula vermelha” (uma referência ao filme Matrix, de 1999), que os permitiria “ver o mundo como realmente é”.

 

A origem de uma ideia

Outro filme que nos ajuda a entender esse mecanismo de convencimento é “A Origem” (2010). Nele, uma equipe entra em sonhos de outras pessoas para “plantar ideias” em suas mentes. Na descrição desse inusitado serviço, uma vez que a ideia ganha força no cérebro da vítima, é quase impossível erradicá-la.

De certa forma, o filósofo e psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) já defendia isso. Para ele, não há nada mais persistente que uma teoria que criamos por conta própria. O poder de convencimento nas redes sociais usurpa esses conceitos ao oferecer recursos para que as pessoas pensem estar construindo suas próprias teorias. Na verdade, estão sendo conduzidas a encontrar elementos que consigam encaixar de maneira crescente, até que cheguem, no seu ritmo, ao momento da “revelação”.

Essas “peças” não precisam ser verdadeiras. Basta que se encaixem em uma ideia que faça sentido, dando ao indivíduo o prazer de sentir que está “vendo o que sempre lhe negaram”. E normalmente essas liberdades ampliam desejos pré-existentes nessas pessoas, como o medo de vacinas ou a submissão de mulheres.

Em outras palavras, a ideia mais forte não é imposta, mas sim construída aos poucos.

Esse poder pode ser visto em nossa sociedade há muitos anos, quando aqueles que escolheram as “pílulas vermelhas” dos mais diferentes sabores na Internet manifestam seu “aprendizado” na realidade. Graças a elas, por exemplo, muitos deixaram de se vacinar contra a Covid-19 e, por isso, morreram.

O clímax da realidade distorcida se manifestou no dia 8 de janeiro, quando uma horda depredou as sedes dos três Poderes da República, achando que estavam defendendo a democracia. E uma parcela significativa da população continua pensando assim, a despeito do absurdo daqueles acontecimentos. Tudo porque essa é a “sua conclusão”.

As diferentes plataformas digitais não podem se furtar de seu papel nisso tudo. Ainda que involuntariamente, elas se tornaram as distribuidoras das “pílulas vermelhas” e se prestam à “lavagem de reputações”. Como esses grupos vêm agindo mais ou menos impunemente há anos, ficaram suas raízes no mundo real a partir do digital. Essas empresas são, portanto, corresponsáveis por isso, e precisam se esforçar muito mais para combater a “realidade alternativa” em suas propriedades.

De toda forma, por mais que façam isso, elas não conseguirão dar conta do problema sozinhas. A mídia e os educadores precisam produzir conteúdos que restabeleçam a verdade e reconstruam os valores de boa convivência.

Entretanto isso não pode continuar sendo feito do jeito de sempre: apontando o que é o certo e o que é errado. Precisam se apropriar das ferramentas dos grupos de desinformação, não para atuar de forma antiética ou criminosa, mas para ajudar as pessoas a aprenderem aos poucos o que é o certo, chegando a suas conclusões.

Isso não é trivial, mas, se não se apropriarem desse recurso, dificilmente terão sucesso nessa empreitada que pode consumir uma geração para desfazer tanto mal.

Até lá, precisamos redescobrir os caminhos para uma convivência pacífica e construtiva, mesmo com aqueles que tenham ideias e valores diferentes do nossos. A despeito de alguns tropeços pela caminho, foi assim que a humanidade chegou até aqui.