
O lançamento do ChatGPT no fim de 2022 plantou uma incômoda dúvida se as novas plataformas de inteligência artificial generativa estariam construindo seus impérios sobre obras alheias, sem autorização ou remuneração. Dois anos e meio depois, ela persiste e se intensificou.
A controvérsia ganhou novos capítulos recentemente. De um lado, a OpenAI firmou uma parceria com o The Washington Post para que seu ChatGPT publique resumos de notícias do jornalão. Do outro, figuras importantes do mundo digital defenderam abertamente a eliminação das leis de propriedade intelectual, uma postura radical e potencialmente destrutiva.
Essa divergência expõe uma fratura profunda no entendimento sobre como o futuro da tecnologia deve se relacionar com a criação humana. Enquanto os defensores da IA argumentam pelo uso irrestrito de conteúdos sob a bandeira do “uso justo”, produtores de conteúdo, desde artistas independentes até organizações como o The New York Times, movem processos alegando apropriação indébita.
A própria OpenAI, que defende seu direito de usar conteúdos alheios sem compensação ou mesmo autorização, não hesitou em acusar a empresa chinesa DeepSeek de violar sua propriedade intelectual quando a última lançou sua plataforma de IA. Essa contradição evidencia a complexidade e a hipocrisia desse debate.
Não se sabe como compensar financeiramente todos os criadores de conteúdo usados no treinamento da IA, e mesmo se isso é devido. Mas está cada vez mais difícil “empurrar com a barriga” a conclusão dessa disputa, que pode impactar profundamente o mundo, graças à penetração que a IA já construiu em nossas vidas.
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Em outros tempos, esse posicionamento dos executivos das big techs seria descartado como provocação barata. Mas em uma época em que sua influência na formulação de políticas públicas cresceu dramaticamente com a aproximação escandalosa desses magnatas ao novo presidente dos EUA, isso fica muito sério.
As empresas de tecnologia argumentam que, sem a flexibilização do “uso justo”, o desenvolvimento da IA será inviabilizado, entregando a liderança global dessa tecnologia absolutamente decisiva para a China. A OpenAI chegou a afirmar, com grande drama à Casa Branca, que a corrida pela IA estaria efetivamente encerrada para empresas americanas.
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Sua postura incongruente evoca a famosa frase atribuída ao físico Isaac Newton: “se eu vi mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes”. A afirmação reconhece que todo avanço intelectual se baseia em conhecimentos anteriores. Mas a OpenAI aplica essa filosofia apenas quando lhe convém.
A situação remete a Steve Jobs, que parafraseava Pablo Picasso dizendo que “bons artistas copiam; grandes artistas roubam” (na verdade, a frase de Picasso era “artistas menores tomam emprestado; grandes artistas roubam”). De fato, a história da tecnologia está repleta de casos assim, como a própria Apple, que desenvolveu a interface gráfica do Macintosh “roubando” conceitos da Xerox, cuja diretoria desprezou seus ícones e até o mouse, inventados pelos seus engenheiros da Califórnia.
Por outro lado, se os direitos autorais forem flexibilizados demais, corre-se o risco de desestimular a criação. Afinal, quem se dedicará a escrever livros, compor músicas ou apurar reportagens se souber que qualquer plataforma digital poderá usar o resultado de seu esforço, sem qualquer compensação, para alimentar máquinas que depois competirão com vantagem sobre seu próprio trabalho?
Impactos cognitivos e econômicos
Para além das questões legais, emergem preocupações sobre como essas tecnologias alteram nossa relação com a informação. Diferentemente dos resultados de um buscador tradicional, que apresenta diversas fontes e incentiva a navegação por diferentes perspectivas, as plataformas de IA oferecem respostas prontas, aparentemente definitivas.
Essa mudança tem implicações profundas do ponto de vista cognitivo. O usuário deixa de exercitar sua capacidade de análise, comparação e interpretação crítica de diferentes visões. Receber uma resposta “mastigada” pode parecer confiável, mas carrega riscos de imprecisão, viés e perda de contexto. Isso pode levar ao surgimento de uma geração com dificuldade para construir argumentos originais.
Essa lógica também ameaça a sustentabilidade dos sites de conteúdo. Se o usuário não precisa mais visitar as páginas originais, seu tráfego cai. Isso leva à diminuição de receitas de publicidade e assinaturas, fragilizando ainda mais o jornalismo profissional. É o paradoxo que o ChatGPT, ao destacar o bom jornalismo, contribui para sua erosão, reduzindo a diversidade das fontes disponíveis.
Há muitos conflitos nessa história para se oferecer uma saída simples. A parceria entre a OpenAI e o The Washington Post, com resumos autorizados, links e atribuição clara, precisa ainda ser validada, pois vejo os usuários se satisfazendo com o que a IA lhes trouxer, não sentindo necessidade de visitar as páginas originais.
A decisão dos EUA sobre essa questão terá repercussões globais. Se o país flexibilizar excessivamente os direitos autorais para beneficiar as big techs, outros países devem seguir o exemplo, desestabilizando indústrias criativas e potencialmente ampliando problemas como falsificação e pirataria.
A inteligência artificial já está entre nós, e não há como retroceder, pois seus benefícios são reais e inegáveis. Mas é urgente compreender seus impactos, e buscar equilíbrios.
Usuários, empresas de tecnologia, criadores de conteúdo, legisladores e a Justiça precisam debater de forma aberta, crítica e colaborativa como construir um ecossistema justo, com um ambiente onde os “gigantes” continuem a nos ajudar a enxergar mais longe, mas sem esquecer de quem são esses ombros.
Afinal, roubar com talento ainda é roubo. E a história mostra que os “piratas do Vale do Silício” sempre foram mestres nesse ofício.