abuso de poder

A liberdade não pode ser vítima da guerra ao terror

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"A Liberdade Guiando o Povo", de Eugène Delacroix - Imagem: reprodução

“A Liberdade Guiando o Povo”, de Eugène Delacroix

O jornal Le Figaro divulgou ontem uma pesquisa que indica que 84% dos franceses estariam dispostos a aceitar restrições a sua liberdade para se sentirem mais seguros. Claramente impulsionados pelo medo causado pelos atentados terroristas de sexta passada, esses números escondem o enorme risco de uma população abrir mão de seus direitos em um momento de crise e isso se perpetuar depois.

A França é tradicionalmente um dos países que mais defendem as liberdades e a privacidade do indivíduo. Mas agora está ferida por um inimigo que ninguém sabe quando, onde ou como atacará de novo. Essa sensação de impotência é terreno fértil para o crescimento de abusos de toda natureza. Na mesma pesquisa, 74% se disseram favoráveis à prisão de suspeitos de terrorismo, enquanto a retirada da nacionalidade francesa desse grupo é aceita por 53% de integrantes da esquerda e por assustadores 94% da direita radical. Vale ressaltar que se tratam de suspeitos, não de casos confirmados. Por fim, 62% dos franceses se dizem contrários à entrada de imigrantes no país (eram 47% há um mês).

Naturalmente a tentativa de controle de tudo que trafega na Internet também está na pauta do dia. Afinal, os terroristas usam os meios digitais para se comunicar, de maneiras bastante criativas (cheguei a ouvir –não-confirmado– que estariam até mesmo usando o inocente game Super Mario Maker para distribuir coordenadas de ataques).

Esse controle é um desejo antigo de políticos, principalmente dos mais sujos e medíocres, que não vira lei em países que prezam o indivíduo justamente pela enorme rejeição da sociedade. Mas o que impedirá isso na França em um momento como esse?

A Internet finalmente será controlada?

 

Não devemos deixar a coisa ainda pior

Não seria a primeira vez que o medo do terror patrocinaria a tentativa de se controlar as vidas digitais dos cidadãos. Principalmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, o governo americano tentou emplacar várias leis que legitimariam a espionagem online do governo (e conseguiu algumas), como o PATRIOT Act.

Claro que o governo americano usou largamente a Internet para se intrometer nos negócios de pessoas, empresas e governos do mundo todo. As revelações de Julian Assange e de Edward Snowden estão aí para documentar isso largamente. Mas o fato de isso permanecer no campo da ilegalidade pelo menos dificulta que a prática se dissemine para qualquer nível de poder, até os mais medíocres.

Já usei este espaço para discutir anteriormente os riscos de governos controlarem a Internet. Mencionei, inclusive, projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional e que permitiriam a qualquer “autoridade competente” arbitrariamente censurar publicações que lhe desagradassem e punir seus desafetos.

Hoje mesmo uma aluna me questionou como fica a liberdade de expressão em um momento como esse. Mais que isso, terroristas poderiam usar, por exemplo, o YouTube para fazer a sua odiosa propaganda? Respondi que a liberdade de expressão é um direito inalienável do ser humano, mas que, na prática, isso é algo bem difícil de se manter e de se exercitar. Defendo-a por princípio e tenho certeza que ela nos traz muito mais benefícios que perdas, por mais que, em muitas ocasiões, seja usada para propagar ideias das quais discordemos ou até mesmo abominemos. Mas essa é a regra do jogo.

Nesse exemplo, o próprio YouTube deve remover o vídeo, pois ele viola os seus termos de uso. Mas e no caso de o vídeo estar hospedado em um servidor dos próprios jihadistas? Além disso, como a imprensa deve tratar esse material? Ele é notícia? Deve ser usado em uma reportagem? Mais ainda: a imprensa tem o direito de querer publicar isso?

Isso nos leva a outro ponto: o exercício de liberdades, inclusive de expressão, está sujeito a critérios morais de cada um. Portanto, do meu ponto de vista, sim, a imprensa tem o direito de reportar as barbaridades, assim como tem o direito de editar o conteúdo para preservar o seu público dos momentos mais crus da exibição (que, diga-se de passagem, seriam desnecessários para as pessoas compreenderem o que estava acontecendo). Da mesma forma, as pessoas têm o direito de serem informadas, mesmo de coisas horrendas.

É uma situação muito delicada, sem dúvida. “Na guerra, a verdade é primeira vítima.” A frase, atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo, poderia ser complementada perfeitamente por “seguida pela liberdade”. Os terroristas têm, pela natureza de sua ação furtiva, uma vantagem sobre os Estados que combatem. A esses últimos, cabe o dever de enfrentar o agressor da melhor maneira possível, a despeito de tal vantagem. Mas não podemos permitir que, em nome desse combate, os governos firam seus próprios cidadãos ainda mais, tirando-lhes a liberdade e a privacidade.

Quem vigia os vigilantes (ou os políticos)?

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Foto: Chuck Patch (Creative Commons)

A Câmara dos Deputados está gestando três projetos de lei que, na prática, criam mecanismos de censura da Internet e ferem liberdades do indivíduo. O principal deles tem, como objetivo, a punição de quem publicar conteúdo ofensivo a parlamentares. O segundo oferece a qualquer “autoridade competente” o poder de exigir que serviços online forneçam os dados de seus usuários sem ordem judicial. E o pacotão de arbitrariedades é concluído com outro projeto que determina que qualquer um que poste conteúdos na Internet seja identificado por nome completo e CPF.

Os três projetos se completam e criam uma sensação de que o cidadão está indefeso diante daqueles que o deveriam defender, e que legislam sem controle ou limites, um caso clássico de “quis custodiet ipsos custodes?” A frase em latim, atribuída a Juvenal, poeta romano do início da era cristã, é normalmente traduzida como “quem vigia os vigilantes:” e se refere à dificuldade de controle das ações de quem está no poder.

Os projetos batem de frente com o Marco Civil da Internet, propondo sua alteração em uma de suas maiores conquistas: a garantia do sigilo dos dados dos usuários, que só pode ser violado por força de uma ordem judicial. Mas o primeiro dos três projetos, de autoria do procurador parlamentar, deputado Cláudio Cajado (DEM-BA), abre portas para que qualquer parlamentar cale a boca de qualquer um que, mesmo dentro do jogo da democracia, diga algo que o incomode.

Isso piora ainda mais a já desgastada imagem do Legislativo junto aos brasileiros. Em todas as esferas e em todos os rincões desse país, vemos parlamentares tentando silenciar aqueles que, mesmo munidos de provas irrefutáveis, dizem coisas contrárias a eles. As vítimas desse abuso de poder vão desde pequenos blogueiros até grandes veículos de comunicação. Para os pequenos, as coações são mais brutais; para os grandes, recorre-se a uma espécie de “censura de toga”.

Um exemplo foi a proibição, por ordem judicial, de o Estadão de falar mal da família Sarney na “Operação Boi Barrica” da Polícia Federal. Até mesmo sites de humor são vítimas da intolerância parlamentar: no mês passado, o deputado Marco Feliciano tentou calar e pedir indenização ao Sensacionalista, por ser alvo de piadas do site humorístico. A Justiça, dessa vez, não acatou as alegações do deputado.

A proposta de Cajado está em fase final de elaboração e deve ser apresentada em setembro, com o apoio do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Se virar lei, esse tipo de pressão tende a aumentar exponencialmente, pois o parlamentar se sentirá amparado em uma lei que lhe dá poder de punir os autores daquilo que não gosta, como também os serviços que hospedarem esses conteúdos.

 

Rito sumário e ignorância técnica

Mas a situação fica ainda pior quando o projeto de Cajado se combina com os outros dois, esses já apresentados.

O projeto de lei da deputada Soraya Santos (PMDB-RJ) abre um perigosíssimo precedente quando, no artigo 7º, diz que qualquer “autoridade competente” pode exigir (e receber) informações pessoais dos usuários de um serviço online. Mas o que é uma “autoridade competente”? O texto não especifica isso e, portanto, amparado pela lei, um soldado da PM ou delegado poderiam exigir informações confidenciais em nome daquele que estiver “representando”. Não se enganem: isso tipo de abuso já existe hoje, mesmo sem amparo legal. Novamente, se o projeto se transformar em lei, a tendência é que assistamos impotentes ao enorme crescimento dessa prática abjeta.

O terceiro dos projetos, de autoria do deputado Silvio Costa (PSC-PE), é uma pérola de desconhecimento básico da Internet. Ele propõe que “o provedor de aplicações de internet, sempre que permitir a postagem de informações públicas por terceiros, na forma de comentários em blogs, postagens em fóruns, atualizações de status em redes sociais ou qualquer outra forma de inserção de informações na internet, deverá manter, adicionalmente, registro de dados desses usuários que contenha, no mínimo, seu nome completo e seu número de Cadastro de Pessoa Física (CPF).”

Ou seja, segundo o deputado, para um simples “curtir” no Facebook, o usuário deverá informar nome e CPF ao serviço, que será obrigado a repassar essa identificação “às autoridades competentes” para a supostamente devida punição, antes de qualquer julgamento, sem ordem judicial. O objetivo está bem claro na justificação do projeto: “essa simples exigência irá, por certo, coibir bastante as atitudes daqueles que, covardemente, se escondem atrás do anonimato para disseminarem mensagens criminosas na rede.” Ou seja, contrariando a Constituição, todo mundo é, por definição, culpado, até que se prove o contrário.

Mas de “simples”, a exigência não tem nada. Dentro do território nacional, existem pessoas que podem legalmente usar redes sociais, mas não têm CPF. Que dizer então de pessoas que vivem em outros países, particularmente estrangeiros? Eles não têm, nem nunca terão CPF, independentemente do que o Congresso Nacional Brasileiro determinar. Mesmo assim, o que postarem nas redes sociais eventualmente chegará aos usuários brasileiros. Parte desse conteúdo pode estar em português e, seja verdade ou mentira, poderá incomodar alguém por aqui. Como resolver isso e atender o que propõe o projeto de lei? Mais que uma impossibilidade técnica, a proposta é inócua porque trata a Internet e todos os seus usuários no mundo como se estivessem sujeitos à legislação brasileira.

Os três projetos são, portanto, indefensáveis do ponto de vista técnico e da democracia. Qual seria o próximo passo? Talvez os deputados peçam que a Internet seja simplesmente “fechada” ou, quem sabe, absurdamente restringida no país. Estaríamos, assim, bem próximos a “nações progressistas”, como a Coreia do Norte.